Turquia

Turquia

sábado, 7 de novembro de 2015

Wèn-dá


Linji




“Imaginemos uma Teia que cubra todo o Universo, onde há nós infinitos, no cruzamento de seus infinitos fios, tecidos em justos paralelismos, tal qual uma grande rede de pesca, ou uma tela de reflexão multimodal. Em cada nó ou em cada um desses intercruzamentos, há uma pedra preciosa ou semipreciosa, que reflete todas as demais, segundo sua cor, brilho, grau de pureza e tônus específicos. Para cada uma que se olhe, ou a partir de cada uma, tem-se uma perspectiva angular do todo, como refletido pelas pedras que nessa se refletem. E é tudo o que se tem, porque o Todo, em si mesmo, é inapreensível, uma vez que, de qualquer posição particular que se adote ou tome, de qualquer perspectiva que se tenha como a mais adequada ou factível, nada se saberá de uma suposta posição central, nó, fulcro ou Pedra Angular, uma vez que a rede, e nossa posição nela, não nos permite apreendê-la a partir de seu Eixo-de-Construção. Isso é o que chamamos universo. Ou multiverso.” 

Vejamos uma coisa interessante exposta na imagem da Rede de Indra: a pessoalidade e impessoalidade estão co-implicadas. Assim, há uma coloração afetivo-imaginal para a “minha esquerda”, “minha direita”, “meu atrás”, “meu à frente”. Há, ainda, o meu “acima” e meu “abaixo”, que posso compartilhar com muitos. Mas se quero adotar coordenadas grupais assumo pontos “fixos” como coordenadas basilares: seja a estrela polar, seja Meca, seja Jerusalém, seja o Cruzeiro do Sul. Também assim criamos “grupos totêmicos”, e não só por aceitarmos um “ancestral comum”, seja zoomórfico ou não. Tanto faz. Todos virados para Meca em certos horários do dia formam um “clã”. Ou uma “egrégora”, como se gosta de dizer na linguagem ocultista. Brigas de clãs ou de egrégoras são como briga de bar ou demandas entre filhos e pais de santo: ocorrem nas melhores e piores famílias. Mas não deviam ocorrer, se tivéssemos amadurecido.  

Como as posições na Rede de Indra são correlativas, gostaria de saltar no tempo, para um tempinho ali atrás, logo atrás. Trata-se de um encontro entre Felipe, o apóstolo de Jesus, este [o próprio] e Natanael, no Evangelho segundo João, que reproduzo livremente, como é de meu estilo. João I, versículos 45-48. Vou contar a passagem, do meu jeito. Jesus acaba de chamar Felipe a segui-lo. Felipe, entusiasmado, diz a Natanael: “eis Jesus, de quem falam as Escrituras, nascido em Nazaré, filho de José, de quem te falei”. Natanael diz algo assim: “E pode vir algo que preste de Nazaré?!” Que beleza, hein? Imaginemos um Pai de Santo ou Mestre-Mago de hoje falando assim de seu “confrade”. Ou um dissidente de uma ideologia ou escola de pensamento falando assim ao Pai Fundador de sua escola. No mínimo, no mínimo, um processaria o outro! Mas Jesus é Jesus! Vamos lá, a essa “acolhida generosa” [talvez, até uma “provocação divertida” de Natanael a Jesus...], Jesus responde a Natanael: “Salve Natanael! Eis um verdadeiro israelita, no qual não vejo nenhuma falsidade ou dolo!” Natanael diz: “Como me conheces e sabes de mim, se Felipe está me apresentando agora?!” Jesus responde: “Antes de Felipe me chamar, eu já te vi embaixo da figueira!” Não sabemos se Jesus viu Natanael fazer boa ou má coisa embaixo da figueira, mas o fato é que com essa resposta elegantíssima [e inalcançável para pais e magos dos dias de hoje], Natanael passou a respeitar Jesus. E Jesus lhe disse: “se me chamas rabi só porque já te vi embaixo da figueira, verás coisas muito maiores do que esta!” Será Jesus arrogante? No contexto, não. Até bem humorado, eu diria. 

Vamos a outro diálogo? Estamos no século IX d.C. A máquina do tempo girou para a frente. Um monge se dirige ao mestre Lin-chi [também grafado Linji, segundo questões fonéticas] e lhe pergunta: “Avalokiteshvara [o Boddhisatva da Compaixão Universal, “O Que Ouve as Dores do Mundo”] se apresenta com seus mil braços e um olho na palma de cada mão. Linji, qual é o Olho Central?!” É claro que o diálogo não foi feito exatamente assim. Consideremos o seguinte: naquela época, um monge fazia uma viagem a pé [ou no lombo de um animal], de dias, para indagar outro monge, que ele tivesse por mestre. Há toda uma expectativa e uma “peregrinatio” envolvida no diálogo que, em japonês, chamaríamos de “mondô”. O Koan é a frase-enigma, o diálogo é o “mondô”. Como estamos na China, e não no Japão, o mondô se chama wèn-dá. Prossigamos com o diálogo. 

“Avalokiteshvara de mil braços trás um olho em cada palma das mãos. Qual o olho central?!” 

Parece que este discípulo tinha algo como a necessidade de situar o fulcro da Rede de Indra. Linji, em silêncio, o pegou pelo braço e o alçou à Plataforma onde se sentavam os mestres. Perplexo, o discípulo ficou em silêncio. Linji reverenciou esse silêncio com um “gashô”, cumprimento Zen com as mãos postas, e depois, puxou o discípulo curioso demais ao seu devido lugar. 

Essa história assim contada por mim soa inverossímil, porque Linji era um cara mau humorado e que esbravejava com facilidade. Mas, por favor, adotemos essa versão Zen dessa história Ch’an [o nome que o Zen tem na China]. Linji alça o inquiridor ao seu posto, cumprimenta-o e o devolve ao seu lugar-de-pergunta: ao lugar da pergunta. Ele intercambia os lugares de “anfitrião” e “hóspede”: de quem recebe e de quem adentra o recinto, a Sala do Dharma, o local de preleção. Essa é uma não-resposta bastante eloquente. Ele mostra, com os gestos e o silêncio, o intercâmbio dos lugares dos nós da grande rede [nós em sentido lato e em sentido “comunitário”], ele permuta o lugar das “gemas”, tal como os olhos nas mãos de Avalokiteshvara. “Que tal olhares por meus olhos por um tempo?!” A coisa é muito mais complexa do que isso, naturalmente. Mas há algo legível logo “na entrada da situação”: no intercâmbio das posições entre hóspede e anfitrião, fica uma não-resposta que vale por muitas meias respostas.








Marcelo Novaes

Nenhum comentário:

Postar um comentário