Turquia

Turquia

domingo, 28 de dezembro de 2014

ah se não temesse essa atrocidades cometidas por loucos fanáticos e retrógados enquanto  por a quidamos risadas de programas xulos na tv comemos nossas ceias natalinas
povos culturas  ideologias são destroçados como formiguinhas
ahhh se eu não temesse a mim mesma
ahh se eu não temesse o mundo..santa maria rogai por nós

nós

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Sobre a religião e o riso

Tela da artista plástica Eli Heil


"Muitas doenças da alma decorrem do fato de que nos levamos a sério. Os demôios são sérios e graves. Deus é leve e ri. 'O riso é o início da oração' (R. Niebuhr)." - Rubem Alves

Houve um tempo em que eu não ria, tinha desaprendido, andava triste, cabisbaixa, não acreditava na beleza... Cheguei mesmo a pensar que o melhor era deixar de ser... Apesar de estar de mal com a vida, nunca deixei de amar as pessoas: a família e os amigos foram fundamentais neste processo de luta contra a depressão. Quando já estava levantando do torpor e reaprendendo o riso, ganhei, de uma amiga, um rosário trazido lá da terra de Madre Paulina. 

Não acredito nas religiões industrializadas e muito menos nas igrejas. Gosto de sonhar meu próprio Deus, inventar minha religião e meus rituais. Tenho minha maneira de conectar-me à energia divina: um banho de mar, uma caminhada... Fechar os olhos, sentir as batidas do coração, tirar os pés do chão, visualizar o universo, chegar até uma estrela, imaginar que a luz retorna a quem precisa... Existem alguns estudos sobre a etimologia da palavra religião, um deles diz que significa religação, algo como religar-se à própria essência, ao que é sagrado e divino.

Apesar de não acreditar nas instituições religiosas, não duvido da fé, ainda mais quando nos chega com gestos de amor... Respeito e admiro qualquer tipo de crença. A fé nos ajuda a persistir! Acredito que a energia do amor é capaz de transformar tudo! O poder curativo do rosário vem muito mais do amor que recebi da amiga do que objeto ou da bênção de alguém que nem sabe que existo!  Guardei o presente na caixinha do carinho.

Tempos depois, com a alma curada, sabendo rir novamente, tornei-me mãe: Helena chegou na minha vida, cheia de luz e alegria! Mais uma maneira de religação com o divino! Nunca ensinei religião à minha filha. A energia divina é presente e intensa nas crianças! As crianças não necessitam da gravidade da palavra! As crianças são a própria essência sagrada!

Quando Helena estava com dois anos, mais ou menos, abriu a caixinha do carinho e encontrou o rosário:

- Mãe, o que é isso?

- É um rosário, meu amor!

- E para que serve?

- Para rezar! - respondi sem me dar conta de que ela não sabia o significado da palavra "reza".

Colocou o rosário em volta da boca e deu uma gargalhada.

- Olha, mãe, eu "risei"!

Caí na gargalhada também! Com todo respeito às diferentes crenças religiosas, mas o Deus dos meus sonhos dá muito mais valor às risadas do que às rezas decoradas!

- Bianca Velloso -

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

RECANTO DE NATAL


 


Os habitantes da cidade de Velnomound, Norte de lugar nenhum, têm uma forma muito particular de comemorar o Natal. Todos os anos, no dia 1 de Dezembro, o Prefeito Feldeman Shortan reúne os representantes da pequena população de 8.000 habitantes para uma curiosa Assembleia seguida de uma importante votação. Dividida em quatro Vilas, com um representante para cada uma, a população local espera ansiosa o resultado do encontro anual.

Composta por um secretário, uma escrevente, um Presidente e um jornalista encarregado de participar o resultado do encontro ao resto dos moradores, a reunião começa com a chamada nominal de cada representante de Vila. Este ano estiveram presentes: Salma Vicontes, da Vila Sobby, Edgar Mistiganny, da Vila Dinthon, Mark Victório, da Vila Bell Canto e Endora Neuman, da Vila Evelyn Weve.

Depois de devidamente sentados, cada representante apresenta a indicação de um nome, recolhido entre a população de sua respectiva Vila e explana sobre os motivos da escolha de tal candidato. Então, dá-se a votação mais curiosa de que já tive notícia, em comemoração ao nascimento do senhor Jesus Cristo os participantes elegem o habitante que mais tenha sido afectado pelos reveses do destino durante o ano e passam e arcar com todas as despesas de sua Festa Natalícia. O benefício entende-se à família e pode ser prolongado até ao meio do ano vindouro, se por acaso o eleito se encontrar acamado ou impossibilitado de trabalhar. Como o molde escolhido para a comemoração de Natal já está em seu quinquagésimo quarto ano, não existem muitos habitantes em condições inferiores, o que demonstra o sucesso da ideia que vai para além das comemorações de fim-de-ano e contamina a todos com a necessidade de estender a generosidade ao próximo, por conta própria e sem necessitar de eleições.

É muito comum que os vizinhos se ajudem e compartilhem os seus bens uns com os outros, criando assim um moto contínuo de vigília pelo bem-estar alheio que já faz parte da cultura do lugar. Embora a cidade não seja muito rica e viva quase que exclusivamente da produção de leite e seus derivados, os habitantes se sentem afortunados em receber ajuda e ajudar, ficando muito felizes com suas vidas.

No meio da Praça Central existe o “Monumento ao Habitante Escolhido”, uma estátua feita em bronze, com um metro e meio de diâmetro e um metro setenta de altura, que retrata oito pares de mãos entrelaçadas formando uma roda. A obra foi doada por um famoso escultor que no Natal de 1976 sofreu um grave acidente na estrada que passa na entrada da cidade e foi imediatamente eleito o “beneficiário extra” daquele período, junto com o Senhor Froudin Portemen, que havia sido escolhido por ter perdido um filho em meados do ano e nunca mais ter-se sentido feliz. O artista ficou tão grato e encantado que doou à cidade a obra e todos os anos ainda passa o Natal com a família a fazer o mesmo que aprendeu no inesquecível lugar.

Este ano o “Habitante Escolhido” foi a pequena Magi Carp, da Vila Dinthon, uma menina de 11 anos que acabou de descobrir-se com leucemia e precisa de todo o apoio e muitas belas bonecas para alegrar a sua vida.

Os preparativos da festa começam no dia 10 de Dezembro e vão culminar na ceia comunitária no dia 24 de Dezembro, na praça central, com o Habitante Escolhido, recebido como um Rei, sendo o centro das atenções e das homenagens. Já soube que as mulheres da cidade prepararam 14 lindas bonecas, um vestido de baile e já fizeram a lista de presença para se revezarem nos mimos e cuidados no dia-a-dia da menina durante o resto do ano.

Duas coisas porém são indispensáveis que eu diga:
Curiosamente a população de Velnomound não é católica;
Infelizmente, Velnomound não existe.

Os vãos




Sou uma pessoa boa
varro o chão
e deixo o cloro agir
na porcelana branca
o importante não é ser herói
fazer um bom negócio
tirar da terra o sustento de dez bocas
tirar de dez bocas o sustento de uma terra
o importante é deixar a porcelana branca
sem mácula
núbil
para que possam ver que está limpa
e tenham prazer em cuspir ali,
em vomitar naquele branco absoluto,
em defecar como quem sonha cataclismos
a paz entre os homens
a imortalidade da alma
a aniquilação do Aedes egípcio

Sou uma pessoa boa

e levo tudo isso em consideração
quando tiro as luvas 
e deixo o cloro agir
na porcelana branca
desde criança tinha essa sensação
uma fatalidade genética
um dom por escrito
ser uma pessoa boa
o Criador atochou toda a bondade do mundo
no meu fardo e tocou o cavalo comigo para longe
eu não preciso ser feliz
não preciso de muito dinheiro
a pessoa boa ama tudo que a cerca
os passarinhos
os gestos pequenos 
o abrir uma caixa de fósforos
o relojoeiro das avenidas
o trem na plataforma
o intervalo da timidez
os injustiçados

Hoje seria mais um dia para ser uma pessoa boa

entanto acordei de um sonho ruim 
numa cidade absurda
onde faço toda espécie de maldades 
sem grafia
sem regras
sem lei
e sinto-me mal
uma angústia me escorre dos poros
como ouro falso
eu não devo ter limpado direito
a frincha das portas
uma pessoa boa precisa lembrar
de todos os vãos
para que o sono não lhe faça mal
uma pessoa boa não usa luvas
toca a porcelana branca só com a ponta dos dedos.




quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Dos Olhos Que Puderam Pensar a Beleza


Anton Jancovoy




Quando meninos pensam em deuses, quando contemplam seu brilho, se faz presente neles a razão porque resplandecem, e a base e o sentido a partir dos quais chegaram a ser o que são, deuses. E tanto pensam nesses sentidos e brilhos, e tanto contemplam as inscrições e marcas desses corpos-de-luz, resplandecentes..., e tanto se acercam do gozo divino, que se livram do ofuscamento e do medo. E em decorrência do seu zelo e dos seus esforços, o brilho (de deuses) que (antes) era afastado, se revela estreitamente unido aos olhos desses que puderam pensar a beleza.








Marcelo Novaes, Cidade de Atys, Capítulo 156. Texto escrito no primeiro semestre de 1986.

sábado, 27 de setembro de 2014

Ancestres



Sigrid Holmwood (1978- )





Na postagem “Fotos Rasgadas”, falei de quem tentasse apagar sua inscrição na família e na infância, por se ver fora de ambas: não-inscrito, ali-e-então, no tempo-contexto, pela insuficiência do olhar dos outros, sobretudo daqueles que deveriam ser os mais próximos. Neste texto, irei fazer o reverso disso, mostrando como o sujeito pode se reencontrar neste lugar perdido, com as fotos que restaram: as fotos de seus ancestrais.

Em muitas religiões, o culto aos ancestrais [e eu diria melhor: a oração pelos ancestrais] o cupa um lugar de destaque. Isso inclui China, sudeste asiático, Índia, China, Japão, populações autóctones de vários perfis, da Amazônia à África. Até os pentecostais de hoje, neopentecostais e Renovação Carismática Católica concebem que se faça a Árvores Genealógicas das famílias de seus fiéis para a assim-chamada Cura e Libertação. Shintoísmo, Budismo Popular [não falo do Budismo Escritural, mas tal como aplicado nas vidas das populações concretas, seja no caso do Budismo Theravada ou Mahayana em suas diferentes versões: Jodo Shu, Jodo Shinshu, Tendai, Shingon, Soto Zen, Tibetano]. Aliás, diz-se que, no Japão, o que sobra de Budismo é mais cerimonial, e referente a esses antepassados. Quem vai a Tóquio procurando o Budismo acaba dormindo num hotel-bolha, e descobre que deveria ter ido a Kyoto...  No Espiritismo Kardecista, Umbanda e Candomblé,  o culto aos antepassados também tem o seu lugar. Por que tamanha preocupação com os mortos? Para além [ou aquém] da condição que se possa atribuir a cada um deles, do Orum aos Umbrais, passando por Círculos ou Degraus do Inferno e Purgatório, a razão é simples: porque a existência deles nos inscrevem na história de nossas famílias e comunidade. E eu não falo de brasões, de etimologias de sobrenomes, nem de status conferido por sobrenomes quatrocentões, ainda que isso seja o lado mais “emblemático” ou “icônico-pueril” da questão toda. Os “bem-nascidos”, etc, são expressões fúteis de um mundo tolo e dos que preservam essa “sobre-inscrição” nas suas pequenas narrativas.

Mas voltemos ao que importa. O sujeito, em qualquer idade, que não tem mais suas fotos de infância, reencontra o pai em suas fotos de casamento. Talvez, o pai ali seja vigoroso e exiba os traços firmes ou rudes que ele tanto temeu. Ou pode exibir uma afeição ou sensibilidade que ele acharia “peculiar” e descontextualizada de sua memória na relação com ele. Há aquelas velhas fotos de avós e tios, em postura tensa/congelada, características dos estúdios de fotografia da época e dos fotógrafos lambe-lambe. Há toda uma hierarquia [ouso dizer: quase uma iconografia] no lugar que cada um ocupa ali, assim como ocupara nas mesas de refeição. São as Santas e Profanas Ceias de cada Lar que podem ser, em parte, reconstituídas.

E, nesse sobrevoo iconográfico [que deve ser mergulho afetivo e de exploração dos vínculos territoriais e modos de inserção do grupo e de cada um] ,percebe-se, por exemplo, aqueles quatro irmãos solteiros, tios remotos, que moraram juntos, até que sobrou um só. E se descobre desde quando os irmãos solteiros viveram em seus guetos próprios, até morrerem isolados. Ou, se percebe, o quanto se falavam, ou não, os primos, ou se perdiam de si aos trinta, quarenta, ou mais cedo. Muita coisa se deslinda, quase até virar poesia funda, nostálgica, mas nunca finda. Sempre viva. Padrões familiares são mais-que-sugeridos, “maldições familiares” [ou padrões repetitivos e destrutivos] são flagradas[os], e o sujeito se vê “malvisto”, malquisto ou “de lado” como seu tio-avô, trisavô bisonho ou bizantino. Ora, a vida sempre a si se recorre, mesmo em seus amplos fractais: tudo cabe no caleidoscópio. O que se chama de Arquétipo também inclui esses padrões, muito para além do Édipo. E o sujeito então descobre paisagens internas, externas, recorrentemente humanas, e percebe que sua questão [talvez ainda informulada] é a variação de alguma questão já proposta, alhures e então. A singularização de algo que “sempre esteve, nunca estando exatamente assim”. O grande insight de Jung em suas amplificações quase-infinitas e fastidiosas foi, talvez, mostrar que o humano sempre se articula nesses eixos de construção invisíveis que o constituem, bem como à natureza. Isso é Goethe psicologizado. Isso é também Strindberg em seu surto psicótico em 1896, narrado em sua “autobiografia da loucura”: “Inferno”. E o que pode ser imaginado, concebido ou delirado existe em algum lócus específico, mesmo que imaginal [e isso também é arquetípico], como já o sabia William Blake, não com essas exatas palavras, porque a vida segue, mesmo dando voltas. Mas são espirais, e não a tal Uroboros dos tratados alquímicos. Felizmente para nós.

E o tal sujeito descobre então, no olhar do avô, o canto do sorriso de sua mãe.








Marcelo Novaes

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Fotos Rasgadas



Suzanne McClelland (1959- )






Imagine você, meu leitor, aquela pessoa cujo sofrimento foi tamanho que ela quereria [ou quer] rasgar suas fotos de infância, todas as suas fotos, porque sente que “ali, e então [e, às vezes, ainda ‘aqui e agora’] nunca foi vista, de fato”. Presunção de tal criatura? Não. De fato, ela estava ali sozinha, e seu meio mal sabia de si [medos, agruras, solidão]. No meu ensaio, O Olho Que Nos Olha Nos Olhos, conto a respeito de uma crise de pânico de certa paciente, onde a foto funcionou como “gatilho” para a crise [na verdade, o gatilho foi a foto somada a outros fatores, que estão lá, na postagem; capítulo terceiro do Olho: “Tempo Fechado para o Ferido Narcísico”].  A pessoa em questão não rasgou suas fotos, mas conheço pessoas que rasgaram. E isso não significava “vontade de apagar o passado”. Não. Trata-se de coisa mais complexa.

Se a pessoa está na foto, ela se olha e sabe que “só a si se tinha”, porque os outros ao lado nada sabiam dela. Isso ocorre com transexuais, por exemplo. Mas com muitos outros que sofreram montantes inquantificáveis e inqualificáveis de abusos e negligências [muitas vezes, ambos: alternadamente e em contextos diversos]: morais, emocionais, físicos. Repito: abusos e negligências. Ênfase para o conectivo “e”.

Assim, para tais pessoas, rasgar a foto não seria um ato de traição para com o ocorrido, mas de “verdade” para com as ocorrências todas, uma vez que “lá e então [nos contextos das tais fotos de infância, emblemas dos tais fatos infantis] estavam sozinhas e anônimas”, naquilo que mais lhes importava: em aspectos essenciais de si mesmas. Estavam sós. O ato de rasgar implicaria em “assumir para si” [num gesto dirigido também ao outro, portanto “dizendo aos companheiros da foto”] que estavam sós.

Sempre falo e reitero a dor ligada à identidade, a dor de não ser visto em aspectos nevrálgicos que nos definem, desde lá atrás: as agressões vividas na escola, os medos religiosos impronunciáveis, os pesadelos inomináveis, o terror do ambiente familiar “disfuncional” [sic; esta palavra é mansa demais para o contexto], o estar num corpo que lhe parece errado ou desconexo [se pensou nas intempéries e cisões pisque-soma tratadas por Winnicott, siga por aí, que é um bom caminho de exploração]. No caso de haver uma biografia com este perfil trágico [sim, a palavra é esta: faça um roteiro de filme e tente definir o personagem de outra maneira que não “trágico”, e verás que o falseia também: serás mais um a falseá-lo...], deve-se entender o fulcro da problemática: a cura do grande ferido passa por dois vetores bastante nítidos: 1) Sua história precisa caber dentro dele [em si mesmo e no seu corpo], ele não pode sentir que “sua história é maior do que ele”; 2) os elementos suprimidos [os impensáveis, bem como os “pré-pensamentos”, tais quais os ideogramas de Bion] precisam ser trazidos para a tira biográfica e “caberem nela”. Resumidamente: o sujeito tem de sentir que o que viveu não o sobrepuja nem o sobrepõe; não o afoga, nem o torna um Náufrago. E mais: que o não dito encontra seu lugar na sua tira biográfica, seja ele o Inefável, o Impensável, o pré-pensado, o não-assumido, o segredo ou interdito familiar, seja o que for. Às vezes, isso é incluso e cabe ao sujeito como “halo”, perfume, faro [no caso dos Inefáveis], como religiosidade sincera e exorcismo dos terrores mais arraigados; outras vezes, como um novo corpo que se apresenta mais fiel ao que sempre se sentiu de si [no caso dos transexuais]; outras, ainda, na possibilidade de se saber inteiro e “com o tamanho que lhe cabe”, de fato, sem idealizações [deificações] e/ou demonizações [eis a cura de narciso!], apesar das fotos já não existirem mais.









Marcelo Novaes

domingo, 7 de setembro de 2014

Conhecimento, Dor e Ancestralidade


Suzanne McClelland (1958- )





“A comunidade dos mortos é nossa primeira companhia”, diria o analista pós-junguiano James Hillman. Ou o nosso primeiro pressuposto, digo eu aqui. Não só os mortos, mas a soma dos equívocos e esquecimentos das gerações que nos precederam, incluindo nossas famílias e ancestrais mais imediatos. Além da cultura, naturalmente. Não é à toa que o intergeracional é uma preocupação religiosa antiga [vide os japoneses, em seus rituais shintoístas e budistas, ou na mescla de ambos, shinto-budistas], e uma questão psicanalítica menos antiga [Nicolas Abraham e Maria Torok sendo seus representantes mais óbvios, no rastro de Sandor Ferenczi, todos eles húngaros].

Mas vejamos: aquele que se depara com o acúmulo de esquecidos e os aponta, atravessa, necessariamente, uma fronteira de dor. Há dor no viver-apontar o esquecido. Isso não pode ser subestimado. Isso está para além dos segredos familiares, que algum membro descendente dessa montanha de silêncio queira evocar-apontar: isso inclui os silêncios ancestrais e culturais, de ambientes como escola, igreja, hospitais, orfanatos, quartéis, repartições. Isso inclui vasculhar todo e qualquer escaninho emperrado por falta de uso e ousadia. Já há um quantum de tensão [dor-e-medo] no simples formular da pergunta. Há a segunda travessia de tensão em “suportar fazer a pergunta sem cúmplices” [num primeiro momento] ou, um corolário disso, catalisando antipatizantes. Há o tempo maior para a decantação de tudo e para a possibilidade de acolher, com um sorriso de simpatia, os próprios ambientes negadores do segredo, sobretudo a família, que acusa quem os desvela de “inventar moda”, sendo a própria expressão sintomática da longevidade da herança.

Conhecer é sofrer para, depois, poder se acalmar. Conhecer é vencer a força-de-inércia da herança ancestral que, como o lodo de um rio que não se limpa há muito tempo [ou que nunca se limpou] tenta emperrar toda inquirição mais funda, todo o maquinário da escavação e questionamento mais incisivos. Porque questionamento “de fato” e “de mérito”, não apenas retórica de confirmação do já-dito, do já-preservado, daquilo que a Ancestralidade toma por “relíquia”. Isso é fácil como imaginar que tudo acaba com a morte [oh, como seria banal e simples todo o problema se resumir no ideograma “finitude”], e é chover no molhado.








Marcelo Novaes

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Desnutrida

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um peixe prata
mata-me a fome

enquanto a tevê revê
uma morte hedionda

a tragédia humana
ronda-me na mesa

decapitado o peixe
decapitado o homem

o estômago revira-se
na dor mais aguda

olho a ausência 
dos olhos do peixe 

penso na ausência 
dos olhos do homem

adoeço os meus olhos
e enjoo do mundo.


terça-feira, 29 de julho de 2014

a cor que reza dormindo – portão número três




um homem velho se escora num dos portões dos meus sonhos
ele é azul
pelo fato de ser tão disciplinado
ele é azul
fato
disciplina e risada
engenharia abissal da energia sonhada
nada não é nada disso nada
matéria é balela
balela é o evento
o homem velho
agora escorado na razão dos meus óculos
é vermelho
uma abelha imensa passa por nós
a esquina é dobrável
meu amor por aquele escritor não sustenta as minhas preces
ando
pois que preciso saber a disciplina do planeta acima de mim
o homem velho canta fininho ¿Por qué volviste a mí? – ¿Por qué volviste a mí? é de cantar desafinado-grosso, homem velho!
disciplina é boato
envelhecer é o boato da carne
acordar não pertence
perecer não traduz
a esquina é desdobrável
Adélia Prado não tem moldura





domingo, 20 de julho de 2014

Rubem Alves



Rubem Alves (1933-2014)



Em março de 2010, passei uma tarde na casa de Rubem Alves, em Campinas. Coloco aqui, no Turquia, um pequeníssimo depoimento sobre nosso encontro. Apesar de ter sido um encontro só, foi denso, e eu o compararia a dois encontros que tive com Eleonora Marino Duarte, a Lola, que é minha amiga até hoje, encontros havidos em 2009 e que, tenho certeza, nenhum de nós se esquece. Eleonora faz parte deste blog.

Uma professora de literatura da Unicamp fez a ponte entre mim, outro poeta e Rubem Alves. Ao chegar na casa dele, ele estava dormindo, fazendo a "sesta". Não tenho a menor dúvida de que ele não nos esperava e, ao ver o grau de confusão de tantos professores universitários, não duvido que o "desencontro" tenha se dado por má comunicação da professora. Foi interessante chegar no dia errado, inclusive para flagrar a espontaneidade assim gerada. E para vivê-la.

Rubem Alves é [e faço questão de manter o verbo no presente] um cara sem afetações. Não vi isso em professores acadêmicos, e não coloco aqui nenhuma exceção, depois de conhecer bastante muitos professores acadêmicos. Ao dar-lhe meu livro de juventude, Cidade de Atys, escrito antes dos meus 26 anos, ele disse: "bastante herético". Vimos que somos, ambos, anticlericais, mas profundamente religiosos. Rubem Alves era teólogo, além de psicanalista, e não lhe agradava o clericalismo, bem como a agenda política atrelada às religiões. Não o imaginem "ateu", longe disso. Eu lhe falei de cristãos que me interessavam, dos blogs que tinha na época [muitos desfeitos de lá pra cá], e ele viu que minha espiritualidade era baseada em cristãos neoplatônicos [Duns Scotus, Escoto Erígena] e nos místicos apofáticos [Nicolau de Cusa e Meister Eckart], além do Budismo. Repito: Rubem Alves era profundamente religioso, ainda que anticlerical. Podia, sim, elogiar um padre destacado do clero [Padre Léo, por exemplo], mas não endossava a institucionalização religiosa. Assim como poderia desmontar os males do fundamentalismo, mostrando o absurdo de aplicar as regras do Levítico para os dias atuais. Fez isso em artigo publicado na Folha de São Paulo. Ainda no tocante à religião, brincou achar o "caqui" a fruta do Éden, e mostrou um quadro que fez, com folhas secas do caqui. Comentou a sobrevivência de sementes de caqui à radiação de Hiroshima, o que para ele era simbólico-emblemático de sua associação.

Era também educador, como todos sabem, com ênfase no "aprender a aprender". Eu diria, um Krishnamurti tupiniquim, sabendo ouvir e fazer perguntas que despertassem mais o conhecimento latente. Maiêutico, portanto.

Tomamos café numa padaria, acompanhado da versão local de um biscoito de polvilho mais consistente, de cujo nome, infelizmente, não consigo me lembrar. Falava-me de encontros que promovia em sua casa, onde os já idosos encerravam as leituras e conversas com "pão e sopa". Nada mais apropriado. Sei que eles liam bastante Guimarães Rosa, a inspiração para o tipo de tertúlia que ele recepcionava.

De lá para cá, muita água rolou. Conheci saraus e deles me despedi, porque me agradam conversas a dois, a três, a cinco, ou aquele ambiente caseiro que os poetas que conheci não sabem produzir em saraus. Fui a dezenas deles para decidir que não quero "mais do mesmo". Enxuguei meus blogs. Rubem Alves decidiu encerrar sua coluna na Folha quando descobriu que "já tinha dito o bastante". Era um grande "escutador" e "provocador de relatos", além de contador de histórias. No passado, achara que dizia as coisas para se encaminhar para o silêncio, mas, de fato, assumia que a perspectiva de um grande silêncio lhe parecia "barulhenta", "assustadora" demais, como na expressão de Nelson Rodrigues: "Fez-se um silêncio ensurdecedor". Em Rubem Alves, paradoxos não eram estilo, nem boa dramaturgia: eram uma constatação da vida. Um modo de ser fiel aos fatos e a si mesmo. Daí suas "deserções" do mundo institucionalizado: ex-teólogo, ex-psicanalista, valorizador das passagens e dos "fracassos" [fracassos corretos, diria eu, como o de Van Gogh], contra nossa idolatria cultural dos "sucessos". Dizia ele, textualmente, e assim me disse: "Nunca conheci nenhum bem-sucedido que fosse interessante". Havia sido convidado a escrever para uma editora um livro para aspirantes ao sucesso, e recusado o convite com este mesmo argumento.

Fique em Paz, Rubem Alves, porque a Paz é para os bons, e vc é bom. Como na tabela periódica, cada qual ruma para o "peso atômico" em que seus sentimentos de amizade, justiça, valor e amor pendem. Se estiveres entre seus iguais, este lugar merece o nome de Céu. Ou uma das boas casas do Pai.

Abraços fortes e conforto à família. 







Marcelo Novaes

sexta-feira, 11 de julho de 2014

Retrato em Branco e Preto


com falsos ares de riso
contidos em seu rosto
o homem não ri
mas seus olhos o denunciam
homem de estranho semblante
por dentro a zombar
daqueles que o contemplam
numa foto em branco e preto
amarelecida pelo tempo
naquele quarto obscuro
onde aranhas tecem suas teias
nas paredes vazias


Ianê Mello
(25.06.14) 


domingo, 6 de julho de 2014

Sobre o tempo de perder.


Trent Parke 1998
The art of losing isn't hard to master; so many things seem filled with the intent to be lost that their loss is no disaster.  (“One Art”, Elizabeth Bishop)
          As pessoas perdem diariamente: neurônios, células, cabelos, unhas, papéis, bilhetes, máscaras, memórias... Perdas banalizadas no amontoar das agendas que remontam tão pouco o contar dos danos absolvidos. Um dia perdemos as chaves de casa e nos pegamos com aquela sensação estranha de ter inaugurado, sem querer ou esperar, uma avalanche ininterrupta de perdas cotidianas: lá se vão os documentos, a hora do almoço e a hora de dormir, a hora de brincar com os filhos, de ligar pra amiga que está de cama com febre, de escrever um bilhetinho de amor pra pendurar na geladeira. Com a geladeira vazia por fora e por dentro, perdemos a alquimia de preparar nosso alimento, perdendo também a mesa e a conversa na varanda, na sala, no quarto. Conversaremos com banheiros, apertados de preferência, solitárias testemunhas das nossas ansiedades claustrofóbicas. E a passos rápidos perderemos um dia a e-terna-idade do chá que nunca marcaremos. Porque teremos passado anos a fio, ferro, fogo e açoite, perdendo um tempo danado investindo toda quantia recebida no final do mês nos pagamentos do começo do mês: para os bancos, para os impostos, para as contas a penar. E quantas a-pesar! E paranoicos trataremos de fazer cópias das chaves, das fotos, dos documentos, dos corpos com os quais deitamos. E nos preocuparemos em ganhar mais dinheiro para não nos preocuparmos em perder tanto dinheiro. E esqueceremos tudo que for de constrangimento com o tempo futuro para repetirmos tudo de novo e não pensando em nada, nada criarmos a respeito... Pequenas perdas visíveis se atrelam a um tempo imediato: “aquele” que não se quer perder, mas já perdido está: estamos sem tempo! E é claro que nos denunciaremos de quando em quando, lembrando uma, duas perdas, ou melhor, esquecimentos...nossos. Uma humanidade inteira de esquecimentos. Uma História inteira.
             E é certo que perderemos ao longo da vida bens de um mundo concreto e excessivamente real, perdendo objetos, coisas que se gastam pelo uso e até pelo bom ou mau abuso: brinquedos, cartões, cartas (se os enviarmos e recebermos algum dia, é claro), perderemos bugigangas, bibelôs, meias, livros, luvas, guarda-chuvas... Guarda-chuvas... Em algum lugar, no mundo do excessivamente imaginado, deverá existir um reino de afeto para os guarda-chuvas perdidos, esquecidos nos bancos das praças, nos lugares a ermo, nas calçadas, nos chafariz tomando banho, nos sinais equilibrando malabares.
          Um dia acordaremos velhos e teremos perdido o primeiro amor... E como será difícil perder! Dor no peito, sofreguidão que parece eternizar as horas, os minutos longe do ser adorado. E logo aprenderemos que doer não é somente parte do crescimento. Doer é o próprio crescimento e aprenderemos – às vezes no susto - que dói mais perder pessoas que coisas e que pessoas não são coisas. Não servem para qualquer tipo de uso ou abuso. Uma aprendizagem que para alguns começará muito cedo, até mesmo antes do nascer da vida ou do dia. Mas que para outros começará tão assustadoramente tarde que mal haverá tempo desprendido para a descoberta de uma compreensão mais profunda de mundo.
            Dizem os mais antigos que algumas pessoas nasceriam com maior propensão a perdas que outras. Seria uma questão de destino, estrela, sorte ou devaneio de quem diz: nasceu “voltado” pra lua. O certo mesmo é que ninguém, nenhuma pessoa humana passará pela própria vida sem nunca perder algo ou alguém – seja por destino, livre arbítrio, resignação ou desejo. A gravidade, bem, a gravidade só saberá quem viver e quem viver viverá. Existem conjunturas as mais diversas e até algumas esquizofrênicas. Às vezes se chega ao auge, ao topo da montanha, da colina ou de uma escada, quando, de repente, sem que se noticie, lá no esconderijo do sótão se encontra em estado escondido uma perda imensa que se aloja na mente e no coração sem qualquer justificativa, ocupando espaço demais. É um imprevisto de existir. Vive-se então o conflito de uma felicidade vazia. Como quando entramos nos casarões antigos, bem mobiliados, limpos e nos cantos nos deparamos com ratoeiras à espreita querendo ferir a frágil existência do rato, o rato de Clarice.
          E não será também o rato que se espera prender e amordaçar com medo e vingança parte de uma perda ulterior? Tanto ódio sangrará o rato? Matará o rato? O cadáver do rato quebrará nossos espelhos? Ou serão nossos os dedos presos e decepados pelas ratoeiras? Mas dizem também os antigos que quando se vão os anéis, os dedos, esses ficam. Os dedos que vamos perdendo das mãos. Para que mãos se elas não nos servem para o artesanato de afagos, preces e acenos?
            Assim como é dito no belo poema de Elisabeth Bishop há uma arte de perder: perderemos cidades, rios, continentes inteiros. Perderemos o sotaque e a gente que morava com a gente, a gente que reconhecia a gente na rua, a gente que abraçava a gente por nada, de graça: nas brincadeiras de roda, nos encontros entre amigos. Perderemos e não daremos conta do risco e do riso. Se uma alegria é uma ação única e irrecuperável, a memória, mesmo a dessa esfumaçada alegria, é nada mais que o vestígio, a pétala seca do que um dia foi vivido.
           Não precisamos de tantos acúmulos. Imprecisamos. E as perdas fazem parte do que somos. Há perdas precisas e até preciosas – como lágrimas, sorrisos, a separação decorrente da liberdade de quem se ama, o crescimento absurdo dos filhos, os frutos que amadurecem e as nossas raízes, que quase sempre tortas, depois de viverem todas as suas estações se vão para o dentro delas. São perdas, partos, despedidas que trazem à tona o nosso departamento interno de “perdidos e achados”.
            Perdemos chaves, óculos, carteira, o trem fantasmagórico das coisas, um porão de lembranças e urgências para as traças. E se o mundo for mesmo acabar pelo aviltamento dos corações como professou Baudelaire, talvez possamos ainda nos empenhar um pouco mais no zelo de nossas mãos para além da arquitetura das lutas e das ratoeiras. Dedilhar os dedos de outras mãos, quem sabe... atravessando a rua e o tempo

Patricia Porto

 (Publicado no livro "Narrativas Memorialísticas: Por uma Arte Docente na Escolarização da Literatura")