Turquia

Turquia

domingo, 8 de novembro de 2015

Prelúdio aos Vermelhos


Edvar Munch (1863-1944)







O preto imerso em preto não pode flagrar o preto. Há de surgir um vermelho contra o fundo preto: um algo que permita cogitá-lo [o preto], ou colocá-lo em perspectiva - o abrir da primeira fagulha. O primeiro fogo iluminado e delineando sombras humanas e ambientais: eis um momento da evocação dos contrastes, até por ampliação. As sombras surgem alongadas. A primeira lupa está dada, ainda que sob ela se enxergue mal. Há muito que rastrear agora, mesmo sem se mover. Rastrear é o verbo que quero enfatizar. “O inimigo sempre nos ronda”: eis uma imagem bíblica, recorrente. Pois aqui há quem “ronde essa ronda” e possa acompanhá-la, para contrabalançá-la. Há o sentinela que está atento aos espaços e aproximações, à luz e aos lapsos, aos trânsitos e transiências; atento às passagens. Há alguém capaz de sondar e farejar aproximações de humanos ou animais, alguém que ausculta os passos de quaisquer ameaças ou riscos iminentes. Os conceitos de “estranho” e “inimigo” também se veem circunscritos nesse perímetro. 

No lampejo de vermelho no breu, há um estado vígil de alerta. Prontidão e reatividade, elementos primais: (re)ação visando o (re)equilíbrio. O equilíbrio, a princípio, é pensado em relação ao grupo primário: os “próximos mais próximos”. Depois, quem sabe, pode-se ampliar o alcance dos envolvidos no conceito “grupo”, muito para além da família, embora ainda esperemos por isso. Somos muito instintivos. Há elementos de ansiedade no que acaba de ser descrito, neste tônus autoevidente de “(re)ação emergente”. Mas devo acrescentar uma nuance ao exposto: quando há “extremo foco na prontidão”, a “percepção da ansiedade é relativamente suprimida”. Eis a ocupação que não se preocupa. Chamamos a isso “coragem”. 

Passionalidade engloba ambas as coisas: medo e coragem. Só depois, pode advir alguma “frieza” na tarefa. Melhor dizendo: “a capacitação de controle da passionalidade via experiência, o que otimiza a função de ronda”. 

Voltemos à faísca. Esta pode estar a céu aberto, moldada como fogueira, ou na entrada d’alguma caverna. Homens, crianças, mulheres podem se agrupar em torno do fogo. Eis o “dado mínimo” para um acampamento ou um lar rústico. Alguém pode rastrear o perímetro cujo centro está definido em fogo ou foco ígneo. Esse alguém é mercurial, como o Hermes de pés alados da mitologia grega. E esse alguém tem “a mobilidade do metal líquido”, sendo este o sentido alquímico da expressão “mercurial”. E a fagulha, necessariamente, vem antes da metalurgia, mãe de tantas ciências físico-químicas, a partir das “ligas metálicas”. Confira-se o tema em Mircea Eliade, no livro “Ferreiros e Alquimistas”. A faísca, assim, é ponto de partida para muitas coisas, inclusive para 1) as “ciências especulativas” ou 2) os devaneios poéticos. Entenda-se, aqui: 1) a alquimia; 2)“a fenomenologia imagética dos elementos”, como proposta por Gaston Bachelard. 

Giremos, então, a faísca e coloquemo-la em movimento: a sirene abrindo caminho, seja ela das ambulâncias ou dos carros de bombeiro. Há também a da polícia. A tal sirene, em qualquer dos casos, alerta e adverte, deixando “em estado de prontidão” quem se posiciona à sua frente, quem obstrui o caminho. Também os alarmes sonoros soam vermelhos ao ouvido. Todos são “índices de urgência”. 

Como o fogo demarca um território, seja ele lar ou acampamento [e este é o “fogo centralizado”], o fogo pode correr e se alastrar, “comendo o que encontra pela frente”: o fogo sem comando. O fogo dos incêndios criminosos. O crime demarca a Lei, eis o paradoxo desse âmbito vermelho. E mais: o vermelho no semáforo define o trânsito e os cruzamentos. Em todos esses casos temos “o vermelho legislando”. Todos “sentimos” que há “algo de legislante” na sirene que pede passagem, como há algo de “alarmante” na queima de reservas florestais. Também nos incêndios urbanos, domésticos ou industriais. No espaço mais rústico-natural ou no mais aculturado encontramos espaço para essa função vermelha de abrir passagem, abrir caminho, frear, ou “limpar pelo fogo”. Da mesma forma que o fogo tem essa dupla função, o mesmo se pode dizer dos instrumentos de metal feitos para este mesmo fim: lanças, espadas, escudos. Estamos no âmbito do “fogo legislante” e do “vermelho-alarme”, contraposto ao “vermelho-focal”. Ambos demarcam um raio de ação, um perímetro de guarda ou vigilância e um “território a ser preservado ou defendido”. São fogos complementares. O avesso da moeda revela que “a moeda ainda permanece ali, intacta”. E o fogo é, também e em si mesmo, um elemento lábil: ora vigilante e centrado, ora “propalado”, “alastrado” - fogo em movimento. “O fogo que limpa, calcinando”. O risco vermelho retorna ao preto. 

Pois bem. Se, até aqui, vimos o fogo como elemento focal, raio de percurso, raio de segurança, raio de ronda e vigilância [o fogo como “faro”, “estado de alerta”, “prontidão” e “ronda”], passamos, por contiguidade imediata, à valência do fogo que denota “poder” e “controle”. O fogo que dorme na pedra e emerge por atrito. E quando tratamos do atrito, falamos, humanamente, de discussão e debate. Implicitamente, estamos tratando de “um enredo em direção à justiça”. A distribuição do fogo implica em “justiça distributiva”. Distribuir o fogo é como distribuir “a possibilidade de cozinhar o alimento”. Distribuir fogo é distribuir “mana” e há riscos implicados nessa distribuição, que apontam para déficits ou superávits: a “assimetria”, a “ganância”, a avareza, a miséria, seja ela entendida no âmbito de grupos pequenos, no campo social mais amplo ou, até mesmo, na assimetria da distribuição de ganhos e perdas desde o nascimento. Há um atrito aqui. Há um tom de “inquietação vermelha” que se questiona sobre a justiça no mundo. Esse vermelho não é uma sirene que pede passagem, é um “clamor” dirigido ao próprio coração da vida. Trata-se de um clamor por uma “regência justa”, lançado ao Estado ou a Deus: “salva meus irmãos, ó Altíssimo, ou risca meu nome do Livro da Vida”. O homem é justificado nesse santo combate com Deus. 

O fogo, tendo sido gerado no âmbito da faísca, precisa ser distribuído. “O rei é bom?” “O rei é justo?” “O rei é tirano?” “Não guardaram pra mim sequer um pedaço de frango do almoço”. Veja como a distribuição do mana soa vermelha: eis o âmbito da justiça distributiva. Há questões “imponderáveis” em relação ao tema: terremotos, tsunamis, tufões, secas. Mas podemos nos fixar nas questões ponderáveis: incêndios criminosos, atitudes imprudentes, boates sem extintor e superlotadas, usurpação de território, fraudes, e uma série de coisas que apontam para o fato iniludível e incontornável de que “alguém se apropriou do que não lhe era devido”. Enfim, de que “alguém roubou mana”: de dinheiro ou alimento ao solo que foi contaminado. Do registro de identidade ao “espaço de prestígio”. Há questões perfeitamente ponderáveis em meio ao quantum de imponderabilidade vigente neste mundo ou Vale de Lágrimas. Pensemos, então, sobre as tais variáveis perfeitamente ponderáveis e veremos o quanto elas têm a nos “alertar” a respeito de nossas “medidas de aferição”. Alguma calibragem parecerá se fazer necessária. 

No que diz respeito à justiça, há retóricas variadas, justas a seu próprio modo Algumas mais onitroantes, outras mais misericordiosas, cordiais. Há tantas faixas de justiça quanto são as nossas necessidades de justiça. Há vermelhos arroxeados e outros que tangenciam os marrons. Assim como há o exorcista e “aquele que se assenta em si mesmo, aparentado às montanhas”. Ambos são justos. Também a definição de um lugar no espectro parece ato bastante arrazoado ou razoável. Há outra inquietação menos absoluta, mas não menos inquieta. Trata-se pela aspiração à regularidade. Estamos ouvindo uma música cuja pulsação arbitramos nomeara como sendo de “doze pulsos por segundo”, só a título de exemplo. Mas algo esquisito acontece no undécimo minuto: passamos a ter seis pulsos no primeiro segundo, treze pulsos no segundo, dois no terceiro, sem qualquer previsão possível. Não só “estamos liberados para desaprovar a música”, como passamos a nos inquietar pela “impossibilidade de encontrarmos qualquer medida nessa escuta”, o que equivale a “não se poder aferir pulso algum nesse desmando sonoro”. Não há metrônomo que aguente. Nem nós. 

Não há o que “apalpar” nessa escuta. Aqui experimentamos outro estado de tensão, também “vermelho”, bem diferente da sirene ou do alarme. Não adianta tentar “abrir caminho”. A coisa é outra. Há um desconforto íntimo, biológico até, um desconforto biopsíquico pela “aleatoriedade que quebra qualquer possibilidade de expectativa justa ou ordenada”. A frase precisa ser relida com ritmo. Há um desconforto biopsíquico pela aleatoriedade que quebra qualquer possibilidade de expectativa de um fenômeno ordenado. É como uma arritmia cardíaca. É como o coração que parece precisar da regência de um marca-passo. Essa é uma das faces do “incômodo vermelho”: trata-se da inquietação pela quebra dos ritmos ou pulsos regulares, e mesmo da “regulação do que se esperaria ordenado”. Como se a Lei da Gravidade pudesse ser suspensa. Não há onde se apoiar. 

A quebra da ordem do pré-visível traz um desconforto específico, ligado à não-regra, à assimetria, à total “arbitrariedade dos fatos”. As duas inquietações são parentes. E os tons de vermelho tão nuançados [mesmo em seus extremos] que justificam todas as colorimetrias. 







Marcelo Novaes

sábado, 7 de novembro de 2015

Wèn-dá


Linji




“Imaginemos uma Teia que cubra todo o Universo, onde há nós infinitos, no cruzamento de seus infinitos fios, tecidos em justos paralelismos, tal qual uma grande rede de pesca, ou uma tela de reflexão multimodal. Em cada nó ou em cada um desses intercruzamentos, há uma pedra preciosa ou semipreciosa, que reflete todas as demais, segundo sua cor, brilho, grau de pureza e tônus específicos. Para cada uma que se olhe, ou a partir de cada uma, tem-se uma perspectiva angular do todo, como refletido pelas pedras que nessa se refletem. E é tudo o que se tem, porque o Todo, em si mesmo, é inapreensível, uma vez que, de qualquer posição particular que se adote ou tome, de qualquer perspectiva que se tenha como a mais adequada ou factível, nada se saberá de uma suposta posição central, nó, fulcro ou Pedra Angular, uma vez que a rede, e nossa posição nela, não nos permite apreendê-la a partir de seu Eixo-de-Construção. Isso é o que chamamos universo. Ou multiverso.” 

Vejamos uma coisa interessante exposta na imagem da Rede de Indra: a pessoalidade e impessoalidade estão co-implicadas. Assim, há uma coloração afetivo-imaginal para a “minha esquerda”, “minha direita”, “meu atrás”, “meu à frente”. Há, ainda, o meu “acima” e meu “abaixo”, que posso compartilhar com muitos. Mas se quero adotar coordenadas grupais assumo pontos “fixos” como coordenadas basilares: seja a estrela polar, seja Meca, seja Jerusalém, seja o Cruzeiro do Sul. Também assim criamos “grupos totêmicos”, e não só por aceitarmos um “ancestral comum”, seja zoomórfico ou não. Tanto faz. Todos virados para Meca em certos horários do dia formam um “clã”. Ou uma “egrégora”, como se gosta de dizer na linguagem ocultista. Brigas de clãs ou de egrégoras são como briga de bar ou demandas entre filhos e pais de santo: ocorrem nas melhores e piores famílias. Mas não deviam ocorrer, se tivéssemos amadurecido.  

Como as posições na Rede de Indra são correlativas, gostaria de saltar no tempo, para um tempinho ali atrás, logo atrás. Trata-se de um encontro entre Felipe, o apóstolo de Jesus, este [o próprio] e Natanael, no Evangelho segundo João, que reproduzo livremente, como é de meu estilo. João I, versículos 45-48. Vou contar a passagem, do meu jeito. Jesus acaba de chamar Felipe a segui-lo. Felipe, entusiasmado, diz a Natanael: “eis Jesus, de quem falam as Escrituras, nascido em Nazaré, filho de José, de quem te falei”. Natanael diz algo assim: “E pode vir algo que preste de Nazaré?!” Que beleza, hein? Imaginemos um Pai de Santo ou Mestre-Mago de hoje falando assim de seu “confrade”. Ou um dissidente de uma ideologia ou escola de pensamento falando assim ao Pai Fundador de sua escola. No mínimo, no mínimo, um processaria o outro! Mas Jesus é Jesus! Vamos lá, a essa “acolhida generosa” [talvez, até uma “provocação divertida” de Natanael a Jesus...], Jesus responde a Natanael: “Salve Natanael! Eis um verdadeiro israelita, no qual não vejo nenhuma falsidade ou dolo!” Natanael diz: “Como me conheces e sabes de mim, se Felipe está me apresentando agora?!” Jesus responde: “Antes de Felipe me chamar, eu já te vi embaixo da figueira!” Não sabemos se Jesus viu Natanael fazer boa ou má coisa embaixo da figueira, mas o fato é que com essa resposta elegantíssima [e inalcançável para pais e magos dos dias de hoje], Natanael passou a respeitar Jesus. E Jesus lhe disse: “se me chamas rabi só porque já te vi embaixo da figueira, verás coisas muito maiores do que esta!” Será Jesus arrogante? No contexto, não. Até bem humorado, eu diria. 

Vamos a outro diálogo? Estamos no século IX d.C. A máquina do tempo girou para a frente. Um monge se dirige ao mestre Lin-chi [também grafado Linji, segundo questões fonéticas] e lhe pergunta: “Avalokiteshvara [o Boddhisatva da Compaixão Universal, “O Que Ouve as Dores do Mundo”] se apresenta com seus mil braços e um olho na palma de cada mão. Linji, qual é o Olho Central?!” É claro que o diálogo não foi feito exatamente assim. Consideremos o seguinte: naquela época, um monge fazia uma viagem a pé [ou no lombo de um animal], de dias, para indagar outro monge, que ele tivesse por mestre. Há toda uma expectativa e uma “peregrinatio” envolvida no diálogo que, em japonês, chamaríamos de “mondô”. O Koan é a frase-enigma, o diálogo é o “mondô”. Como estamos na China, e não no Japão, o mondô se chama wèn-dá. Prossigamos com o diálogo. 

“Avalokiteshvara de mil braços trás um olho em cada palma das mãos. Qual o olho central?!” 

Parece que este discípulo tinha algo como a necessidade de situar o fulcro da Rede de Indra. Linji, em silêncio, o pegou pelo braço e o alçou à Plataforma onde se sentavam os mestres. Perplexo, o discípulo ficou em silêncio. Linji reverenciou esse silêncio com um “gashô”, cumprimento Zen com as mãos postas, e depois, puxou o discípulo curioso demais ao seu devido lugar. 

Essa história assim contada por mim soa inverossímil, porque Linji era um cara mau humorado e que esbravejava com facilidade. Mas, por favor, adotemos essa versão Zen dessa história Ch’an [o nome que o Zen tem na China]. Linji alça o inquiridor ao seu posto, cumprimenta-o e o devolve ao seu lugar-de-pergunta: ao lugar da pergunta. Ele intercambia os lugares de “anfitrião” e “hóspede”: de quem recebe e de quem adentra o recinto, a Sala do Dharma, o local de preleção. Essa é uma não-resposta bastante eloquente. Ele mostra, com os gestos e o silêncio, o intercâmbio dos lugares dos nós da grande rede [nós em sentido lato e em sentido “comunitário”], ele permuta o lugar das “gemas”, tal como os olhos nas mãos de Avalokiteshvara. “Que tal olhares por meus olhos por um tempo?!” A coisa é muito mais complexa do que isso, naturalmente. Mas há algo legível logo “na entrada da situação”: no intercâmbio das posições entre hóspede e anfitrião, fica uma não-resposta que vale por muitas meias respostas.








Marcelo Novaes