Turquia

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sábado, 18 de julho de 2015

Grau ou Circum-ambulação


Miguel Leal Machado





Vou analisar este pequeno poema meu, Grau, sob a égide da circum-ambulação e seus fins: nomeativos, designativos de “doenças e saúdes correlatas”, dentre outros possíveis fins. Este o tema deste ensaio. 


Grau 

Diga-me, agora, como experimentar 
nossas doenças por diversos ângulos 
[não se esqueça de me frisar “o 
como do como” experimentar 
cada um desses ângulos]. 

Como visibilizá-las [claro, antes de 
visualizá-las] e situá-las diante de 
tudo o mais. Explique-me, então, 
o que há de ser esse “tudo o mais”. 
[Depois de me mostrar seus invisíveis 
eixos-de-construção]. 

Fale-me, ainda, de cada porção de 
saúde correlativa a cada lesão. [Há 
de haver alguma]. E reflita sobre o 
esforço do homem em dar nome 
às coisas, em gesto inaugural. 

Utilize-se da História, da Filologia, 
da Antropologia ou da Semiótica; 
a Vida requer cem mil abordagens 
para uma aproximação [lenta e 
suave, ante e pré-universal], 
sílaba a sílaba, grau a grau. 

Rememore [e refaça, desde o 
primeiro homem] o nome de 
cada coisa. 

[E a coisa de cada nome]. 

 ..... 

Nesse artigo, quero olhar para um poema que diz algo difícil de nomear. Ele nem sequer o nomeia, mas alude à nomeação. Seu título, “grau”, sugere intensidades, e não “gêneros”. A primeira questão que fica é esta, então: seriam as tais intensidades, muitas vezes, substitutas dos gêneros por nomear? Nomear a doença é, em algum grau digno de nota, uma tarefa que mereça o nome de “terapêutica”? O sem-nome é algo que fica incrustado e pede por um nome, e desse assunto já tenho falado bastante, desde O Olho Que Nos Olha Nos Olhos. Mas aqui, valho-me deste texto, na tentativa de apreender “algum algo mais, sob novo ângulo”. Vou descobrir o quê, enquanto escrevo. É o melhor modo. “Diga-me, agora, como experimentar/ nossas doenças por diversos ângulos/ [não se esqueça de me frisar “o/ como do como” experimentar/ cada um desses ângulos].” Não se esqueça de enfatizar o “como do como”. 

Quando nos situamos diante de algo que nos chega, o que inclui pessoas, saúdes e doenças [em vários graus], a primeira coisa que sentimos é um “campo”. O “campo” antecede toda explicitação de gênero ou grau. O campo traz consigo [ou arrasta consigo, conforme o caso] o grau, certo tônus e certo quantum consigo. Mas é um “campo”. A presença puramente silenciosa, do monge que não deixa pegadas no papel de arroz, é coisa para Kwai Chan Kaine,o personagem de David Carradine na série televisiva Kung Fu. Nós deixamos pegadas e emitimos esse “campo” com nossa chegada. Mas somos “só nós” que o emitimos? Certamente não. Já falei da projeção em artigo anterior, no exame mais detido que fiz de outro texto mais extenso, Kadosh. Espera-se nas relações e, sobretudo, na relação terapêutica “a retirada das projeções”. A retirada das projeções é uma das faces da “separatio alquímica”, de nossa separação do outro, da definição do que é nosso e do que é “alteridade”: o que não provém de nós. Mas quando da chegada de algo, alguém, saúdes e doenças, é inevitável que projetemos muito de nosso. Já que citei Kwai Chang Kaine, esse memorável personagem, vou explorá-lo um pouco. Meus leitores mais jovens podem seguir os “não rastros” que ele deve ter deixado, nos You Tubes da vida e outros vídeos. O término de todo episódio dessa séria se dava com o personagem principal “seguindo viagem”, sem que soubéssemos para onde. A impressão que nos ficava é que “nem ele sabia para onde”. Isso é interessante. É um “On the Road”, o famigerado “pé na estrada” de Jack Kerouac exponenciado à estatura de um monge shaolin editado para a televisão. Difícil ganhar a concorrência penso eu. O comportamento de Kwai Chang kaine também trazia outras marcas, que só assinalo aqui: 1) quando confrontado, ele reagia com o mínimo de violência cabível no contexto: jogar ao chão, torcer um braço do oponente, algo do tipo. Não existe a não-violência, quando se é atacado, a não ser que não haja seriado e o herói morra no primeiro capítulo; 2) Kwai Chang Kaine parecia navegar conforme o vento, mesmo quando se deitava com alguma amante de ocasião, porque partia sem visgo, sem apego; mas ele não era um “Don Juan”, longe disso: não “atirava para acertar”, não armava ardis para conquistar ninguém; às vezes [e poucas vezes], acontecia. E só. Fiquemos com essas poucas características do personagem-monge, por enquanto. Mas algo interessante já podemos ver: embora eu apresentasse o personagem como que “na borda da ausência de campo” [o homem que não deixa pegadas...], eu delineei algo do campo deixado por ele, ou trazido com ele. Mesmo Kwai Chang Kaine deixa pegadas, malgrado todo o seu treinamento “monástico”. Nesse esboço, eu delineei algo do “como” o personagem surgia, agia e saía de cena. Algo. Um ângulo ou poucos ângulos a respeito. 

Se eu recorresse a outros amigos da época, agora cinquentões, eles trariam outras camadas de lembranças, ainda que, em essência, não nos desdisséssemos, provavelmente. E esse é outro dado interessante: “por que não nos desdiríamos, em essência?!” Essa suposição minha resistiria a qualquer experiência do “fazer memória” de outro espectador da mesma série? Penso não haver delírio algum nisso. 

Se eu perguntar a cem profundos conhecedores do trabalho de Sebastião Salgado o que suas fotografias dizem, ouvirei explanações diversificadas sobre as mesmas, mas essa mesma pluralidade de relatos me ajudará ame aproximar de “algo” a respeito do trabalho do fotógrafo. A esse processo de “andar em torno” do trabalho, a partir desses vários relatos [ou “ângulos” de ver o fotógrafo], podemos chamar de circum-ambulatio, ou “circum-ambulação”. Se o monge shaolin andou sem deixar pegadas, eu o circundei acima, tão sorrateiro quanto: girei em torno dele, pé ante pé. Circum-ambulação é o trabalho de circundar algo por diversos e variados ângulos. É um termo usado em psicoterapia analítica de base junguiana para descrever o trabalho de explorar um símbolo por vários ângulos. O retorno do símbolo no discurso analítico [seu reaparecimento, em novo ângulo, ou seu “giro” ao longo dos sonhos] viabiliza tal estilo de aproximação. A circum-ambulação, mais do que um termo técnico da análise junguiana é isso: um modo de aproximação de algo. Um dos “comos”. É um “modo de angular”, um modo de prover ângulos de observação que, juntos, viabilizam uma maior discriminação do que surge, como surge, quando surge, como vai, quando vai. Sem nenhuma presunção de “respostas últimas”, porque isso é para monges de verdade, assim como a retirada de “todas as projeções”. Vemos o mundo com cores que emprestamos ao mundo, em graus variados: ninguém vê o mundo sem lhe emprestar “qualquer tonalidade”, o tal Real com maiúscula: para fazê-lo o sujeito teria de ser um Iluminado, e nunca houve qualquer iluminado entre analistas. No mundo, algumas centenas, ao longo dos séculos, se tanto. Então, aqui como lá, no filme, na terapia, no poema, qualquer discurso “absolutista” ou “totalizador” é apenas isso: um discurso. O poema é provocador também nesse aspecto particular, e justamente por ele: pelo seu nível de exigência. 

Sabemos que uma montanha é uma montanha, antes da iluminação, e depois da iluminação. Isso é um provérbio conhecido entre os praticantes Zen. Durante intensos períodos de meditação, ficamos na dúvida... Pois bem, mas sabemos que um albino é um albino, por exemplo. E nenhum discurso sobre a vacuidade inerente das coisas nos fará não correr de um rinoceronte que nos persiga em meio à paisagem urbana, ainda que não se espere por rinocerontes num local assim. Talvez ele tenha fugido. Talvez o desequilíbrio ecossistêmico o tenha trazido para novas pradarias, próximo às padarias.Não importa: uma montanha, mesmo parada ali, é uma montanha. E tanto é que ela “chama alpinistas para escalá-la!” Veja que curioso! Se você perguntar a um alpinista por que faz tanta questão de escalar certa montanha, ele lhe dirá quatrocentas boas razões, todas sem sentido para você, caso escalar montanhas não faça parte de sua “lista de coisas a fazer antes de se despedir deste mundo”:1)que quer testar os limites dele; 2) que quer transpor os limites dele; 3) que quer se superar; 4) que quer vencer “o desafio de subir tal montanha” e inúmeras variáveis do tipo. Quem lhe coloca o desafio: a montanha? A linhagem de alpinistas vitoriosos? A linhagem de alpinistas que soçobraram, ou por terem desistido, ou por terem morrido ou sofrido acidentes graves durantes suas tentativas de fazer o mesmo? Afinal, quem é o autor do tal desafio? A própria montanha? Sua própria existência é um “pedido tácito [ou implícito] para que seja escalada?!” De qualquer maneira, a montanha, quietinha ali, cria um campo para várias pessoas diversas, o que inclui o montante dos alpinistas. Se alguém tiver de falar do Monte Kailash ou outro, levará em conta a opinião dos alpinistas a respeito; da mesma forma, no caso de Sebastião Salgado, a opinião de fotógrafos será levada em conta. A dos fotógrafos que gostam de trabalhar com os matizes branco-e-preto nas fotos, também. Em suma, para nós que estamos aquém [muito aquém] da Iluminação, a circum-ambulação não é perda de tempo, como não é perda de tempo escalar montanhas para os alpinistas. 

Prossigamos. O ideal não-de-todo-atingível para nós, na aproximação gradativa que fazemos de algo, alguém ou de um símbolo, é apreendermos a natureza do símbolo, do algo, do alguém. O quanto nos seja possível, em seus diversos ângulos. No par terapêutico, quando o sujeito em terapia [o analisando] deixa de projetar conteúdos seus no analista e no espaço analítico, a terapia foi concluída, e o sujeito pode sair do ambiente “mais inteiro”, ou “comportando mais de si mesmo em si mesmo”, assim como Kwai Chang Kaine leva consigo o que ele é, mesmo que saia só com aquela velha mochila. O sujeito saído da terapia sabe mais de si do que quando entrou, em muitos de seus ângulos e de seus “comos”. Não se espera que o sujeito que fez uma análise freudiana saia da terapia “convertido a Freud”, nem que o suejito que fez uma análise junguiana saia “convertido a Jung”: essas são “más terapias”, “más análises” que fracassaram em fazer o sujeito ver a si, e não ao “referencial de fundo do analista”. Se o sujeito vir e adotar o tal referencial de fundo ao ponto de uma “conversão ao referencial”, o referencial não estará tão ao fundo assim: terá tomado a frente do que deveria ser um trabalho de encontro e das retiradas de projeções do analisando nesse “campo do encontro”. 

Criamos campos o tempo todo: nos cafés, nos primeiros encontros, onde expectativas e “suposições” são mais ou menos visíveis ou até gritantes. Não no caso de sermos um Kwai Chang Kaine: no caso dele, as projeções foram muito minimizadas. Alguém me perguntará se tal retirada das projeções seria desejável em todos os casos: nos romances, por exemplo. Em grande medida sim, se o sujeito não quiser fazer amor consigo mesmo, tendo no outro só um objeto com que friccionar a própria pele. E no caso das musas nas artes? É claro que há idealização nesse fazer-arte, mas ficam os objetos que patenteiam tal momentum: vão-se as musas, ficam as músicas, por exemplo. Nada de mal nisso, concorda o amigo leitor? 

“Diga-me, agora, como experimentar/nossas doenças por diversos ângulos/ [não se esqueça de me frisar “o/como do como” experimentar/cada um desses ângulos]./Como visibilizá-las [claro, antes de/visualizá-las] e situá-las diante de/tudo o mais. Explique-me, então,/o que há de ser esse “tudo o mais”./[Depois de me mostrar seus invisíveis/eixos-de-construção].” Poesia não se explica, mas isso é um artigo [ou pequeno ensaio], a partir do texto poético. Em que situação a doença é o foco de nossas perguntas? Quando não nos sentimos bem. Isso também se dá na situação analítica. Não decidimos escalar a montanha porque “o analista está ali”, a não ser que isso seja um investimento para colher juros adiante, como em muitas análises didáticas que mantêm o prestígio [e os altos rendimentos] de certa instituições. Em não sendo para fins de investimento profissional, o sujeito vai ao analista porque precisa saber mais sobre si, e isso inclui sua doença, seu mal-estar. Mas não só. Cada doença ou mal-estar deverá ser contextualizado “em meio a tudo o mais”: o contexto, as relações, as muitas escolhas ou desistências havidas até então, satisfações, frustrações. Numa perspectiva demasiado macro, tudo isso pode parecer derrisório, risível. Mas essa é a matéria do humano antes do monge, antes de andar sem deixar pegada. Antes disso, há mais ou menos visgo. Citamos alguns possíveis: o visgo da adesão a uma doutrina analítica a fortiori [ou a priori], como pálido substitutivo para uma “religião-em-falta”; as paixões súbitas e viscosas desde o primeiro olhar, ou mesmo “no canto de olho”; o flerte com uma doutrina que me dará lucro adiante. Se falamos do “ser” e do “descobrir-se” isso não tem lugar. Nenhum palco montado para dar shows a terceiros, nem para gravar vídeos de si mesmo para assistir mais tarde. Saímos sem bagagem, quer sejamos ou não monges. Entramos na vida de mãos vazias e saímos dela com aprendizado, não com penduricalhos ou medalhas. O poema pede que o interlocutor ajude a explorar “nossas doenças” por diversos ângulos e explicar “o como do como” experimentar o “cada um desses ângulos”. Uma coisa importante a destacar é que a solicitação é coletiva: é um “nós” que solicita a resposta. Não se trata de um cortejo de mortos vindos de Jerusalém pedindo instruções, ou coisa que o valha, mas um pedido comum a todos e a cada um de nós: daí a primeira pessoa do plural. Não haverá Sete Sermões a instruírem tais mortos de Jerusalém para que saibam como se comportar depois da vida e o que esperar dela, mas apenas a solicitação comum de que saibamos nos aferir em nossas doenças, mas não só nelas. 

Nossas doenças são apontadas por todos. E não só nossas doenças: nossas diferenças são apontadas o tempo todo. Se aqui um albino é raro, na África é mais. Em ambos os lugares são apontados. Não podemos chamar a essa condição de “doença”, mas ela é apontada. Não nos atreveríamos a chamar os altos picos de “doenças,” mas podemos considerá-los “acidentes geográficos” [sic], e isso nos moveria [=a alguns de nós] a explorá-los. O mesmo se pode dizer de cavernas submarinas e outros elementos menos cotidianos. O menos cotidiano parece imantar dedos [e olhos] a apontá-los e nomeá-los. “Puxa, você tem idade para ser vovô e nunca quis ser pai?!” “Puxa, você tem tantas posses e folga no orçamento, mesmo assim nunca quis viajar para fora do país?!” “Puxa, você toca tão bem tal instrumento e nunca pensou numa carreira profissional?!” “Puxa, você nasceu num lugar paradisíaco, com lindas praias, e quer se mudar para uma cidade tão sem graça?!” “puxa, hoje em dia é tão fácil reparar tais orelhas de abano, não te ocorreu fazer uma cirurgia?!” Puxa, você raspa os pelos de sua orelha?!” Essa minha progressão de exclamações foi intencional, desci ao ridículo para deixar claro que a cada “interjeição suspirosa” [e o termo é pra ser engraçado, não há nada de suspirante aqui, mas de suspiroso mesmo...] o sujeito que emite a locução fala mais de si do que do outro. Invariavelmente. Ele fala: “eu não gostaria de conviver com essas orelhas de abano!” “Eu adoraria morar nessa cidade praiana!”“Eu viajaria para o exterior se tivesse recursos!”, etc, etc. Mas há algo comum a todas essas “assertivas”: elas n]ao só apontam para a escolha do outro como uma escolha “ilegítima” [!] e, o que é pior: suspoeitam que algumas dessas escolhas são pseudo-escolhas, más escolhas ou até mesmo “auto-sabotagens à guisa de escolhas” [!]. Se o outro não se incomoda com as marcas que traz de um acidente, ele deve ter sérios problemas! Veja o leitor que coisa curiosa. Seria quase como dizer: “se ela quase não tem seios e não faz cirurgia, mesmo podendo, no fundo ela rejeita seu corpo feminino e/ou sua feminilidade” [!]. Saúde não tem a ver com pasteurizações: pasteurizações são o “campo” da publicidade e não o “campo da saúde”, seja ela psíquica, psicoemocional ou psicofísica. Que isso fique claro. 

O nós, entretanto, é um “pedido coletivo”. Ele aponta para o “nós” mais comum a cada contexto cultural: a doença média socialmente aceita a que costumamos chamar “saúde”. Veja que a nossa cultura considera o narcisismo de se expor em games televisivos e confinamentos como “se gostar” e não “gostar de se exibir”. Assim, para cada contexto e cultura o “nós” será um sujeito coletivo mais ou menos (in)distinto. Essa ambiguidade é proposital. Um nariz enorme pode ser um grande problema para certo sujeito, até maior do que seu nariz. Para outro, pode mobilizá-lo a procurar outros com nariz tão grande quanto fazerem juntos uma companhia teatral, ou grupo musical, segundo o talento dos envolvidos, e batizar o grupo de “Os Napões”. 

“Diga-me, agora, como experimentar/nossas doenças por diversos ângulos/[não se esqueça de me frisar “o/como do como” experimentar/cada um desses ângulos]./Como visibilizá-las [claro, antes de/visualizá-las] e situá-las diante de/tudo o mais. Explique-me, então,/o que há de ser esse “tudo o mais”./[Depois de me mostrar seus invisíveis/eixos-de-construção].” Um eu faz ua pergunta sobre o “nós”. “Diga-me”, e não “diga-nos”. Esse é mais do que um detalhe. A pergunta, aqui, tem de ser feita no singular. Qualquer solução coletiva é pasteurização ou coletivização indevida, ainda que se refira ao “nós” como soma de indivíduos. Isso só poderia ser destacado depois do “nós” e em contraste com ele. Essa foi uma forma de tornar visível a questão do “eu”, dando-lhe “visibilidade por certo caminho”. Assim se pode fazer com tudo, ainda que alguns temas exijam uma destreza e perícia incomuns, no tocante ao feeling, no tocante ao faro. Tornar visível para que o “nós” possa visualizar. E é sempre o “eu” que visualiza antes do nós, seja no caso do fotógrafo, do analista, do historiador.A força inercial do grupo é isso mesmo: inercial. Ela é, antes de tudo, resistência, antes do que “insight” ou mudança. Isso se aplica a todos os grupos: famílias, instituições, Igrejas. O eu vê antes. “Diga-me”... Quem solicita as respostas parece estar disposto a comunicá-las ao “nós” ou, ao menos, estar ciente que sua questão refere-se “a cada eu que constitui o ‘nós’ em questão”. Não estamos diante de uma indagação ingênua. 

Há eixos de construção invisíveis às coisas que precisam se tornar visíveis: pressupostos, aforismos tomados como certos, premissas sociais compartilhadas, pressupostos linguísticos, tudo isso. Não falo só dos “arquétipos” junguianos, que são muito anteriores a Jung. É só pesquisarmos os arquétipos em Pseudo-Dioniso Areopagita, por exemplo. Ou em Proclo. Esses também são eixos-invisíveis-de-construção. As proporções numéricas subjacentes às coisas, tudo isso constitui o grupo aqui apresentado na indagação: os invisíveis eixos de construção. Na caracterologia afro-brasileira dos Orixás de cabeça, frente e ajunto, de cada indivíduo, temos outros eixos invisíveis [ou pré-visíveis] de construção das identidades. É sempre necessária a operação de tirar as Sombra [inclusive grupal] tais eixos para que o indivíduo saiba de si. E também de sua “doença”. Melhor dizendo: a partir de seu desconforto, o que inclui “todo o âmbito do que lhe foi apontado como doença ou diferença”. O menino tem mamilos proeminentes desde a infância, outro é baixo, comparativamente ao grupo, ou magro demais. Há “n” variáveis que só são doenças porque a sociedade é doente. Na medida em que pinçamos a Sombra cada questão, o entorno precisa ser delimitado ou nomeado. De uma forma ou de outra. Circum-ambulamos em torno para que cada coisa emirja em sua singularidade e particularidade em relação ao “nós”, o que também ilumina o “nós”, inclusive na possibilidade [mais á frente, porque o coletivo é inercial, como já dito] deste mesmo “nós” ser visto como a soma de eus. “

Mas a sociedade de hoje é ultra-individualista”, Marcelo. Não em relação ao que falamos.Há muitos eus ecoando lugares-comuns. Se pinçarmos quinze frases de efeito ou feitas, teremos 85% ou mais das falas que encontraremos em todos os nossos amigos do Face. É isso uma “soma de eus”? 

“Fale-me, ainda, de cada porção de/saúde correlativa a cada lesão. [Há/de haver alguma]. E reflita sobre o/esforço do homem em dar nome/às coisas, em gesto inaugural.” Se quem pergunta é um “eu”, ainda que sua pergunta seja extensiva ao nós, quem responde deve ser, necessariamente, um “eu”. Quem responde também é o indivíduo, não é o coro das peças gregas. É o sujeito. A pergunta pede pela “saúde correlativa à cada doença, sugerindo o [ou suplicando pelo!] fato de “ter de haver uma”. Aqui, voltamos à caracterologia em seu aspecto singular: as aptidões não se somam. Algumas virtudes, inclusive, se excluem, no mais das vezes. O loquaz polemista não é o mestre do silêncio. As qualidades de um combatente político não serão a do monge, salvo raríssimas exceções. Mesmo aí, limitações ou diferenças trazem ampliações de sensibilidades ou potenciais. Há cegos com uma captação de campo sonoro e posição correlativa de objetos e pessoas que nos soariam “mágica”, de tão precisos que são. Jogadores de futebol cegos o demonstram, sabendo se guiar pelo som da bola, e se posicionando dinamicamente em relação ao movimento de sues adversários. Há experimentos de jogadores assim jogando com não-cegos! Por isso, as tais saúdes correlativas às doenças são os pontos fortes que a cultura despreza, naquilo que não está apta a ver. Ou a família despreza. Ou a escola. Ou a Igreja. Ou a Universidade. Os grupos em sua cegueira grupal e inercial. Que seja restituído a cada “eu” que indaga, por cada “eu” interpelado, essa porção inequívoca que é de direito de cada um. A porção de saúde. Quem questiona, o “eu que quer saber do nós”, sugere saber do esforço necessário para dar nomes às coisas “ensombreadas e encobertas pela cultura”. Tais nomes, muitas vezes, são “inaugurais”. Não há preciosismo em cunhá-los: eles são produtos da necessidade de uma nomeação “suficientemente justa e precisa”. Suficientemente, já que tudo pode avançar, e nomes melhores podem ser “achados”, “pescados”, “configurados pelo eu falante”, na medida em que seu campo de “visibilização” é ampliado. O visualizado pós-visibilização ganha nuances, e as nuances atingem o campo semântico, fertilizando-o também. 

“Utilize-se da História, da Filologia,/da Antropologia ou da Semiótica;/a Vida requer cem mil abordagens/para uma aproximação [lenta e/suave, ante e pré-universal],/sílaba a sílaba, grau a grau.” Essa nomeação exige do nomeante a travessia cômoda das disciplinas estanques: não é uma atividade acadêmica [de especialistas], mas uma atividade Vital [de pensadores que, livremente, se indagam, sem as balizas pré-moldadas das disciplinas aceitas, frutos também da força inercial do grupo].Essa é a sugestão [ou “súplica”!] do eu falante e indagador, que sempre é um eu-sozinho, porque destacado da multidão, ou do grupo. 

“Rememore [e refaça, desde o/primeiro homem] o nome de/cada coisa./[E a coisa de cada nome].” Essa tarefa de dar nome às coisas acompanha o homem desde o início do mundo. É uma tarefa adâmica, herdada e sempre inconclusa. Nessa tarefa, eu incluí [e privilegiei] aquilo que “o coletivo ainda não conseguiu nomear”. É o indivíduo que deverá fazê-lo. 

A circum-ambulação é tão dinâmica como os movimentos planetários de rotação e translação. Os símbolos que retornam em nossos sonhos, em suas posições correlativas, trazendo novidades ou apontando ciclos e circuitos sazonais, bem como “razões de proporcionalidade fixas, segundo as posições do observador” [como no caso das paralaxes astronômicas] são só um sintoma disso. Um dentre tantos. 




 Marcelo Novaes

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