Turquia

Turquia

sábado, 27 de setembro de 2014

Ancestres



Sigrid Holmwood (1978- )





Na postagem “Fotos Rasgadas”, falei de quem tentasse apagar sua inscrição na família e na infância, por se ver fora de ambas: não-inscrito, ali-e-então, no tempo-contexto, pela insuficiência do olhar dos outros, sobretudo daqueles que deveriam ser os mais próximos. Neste texto, irei fazer o reverso disso, mostrando como o sujeito pode se reencontrar neste lugar perdido, com as fotos que restaram: as fotos de seus ancestrais.

Em muitas religiões, o culto aos ancestrais [e eu diria melhor: a oração pelos ancestrais] o cupa um lugar de destaque. Isso inclui China, sudeste asiático, Índia, China, Japão, populações autóctones de vários perfis, da Amazônia à África. Até os pentecostais de hoje, neopentecostais e Renovação Carismática Católica concebem que se faça a Árvores Genealógicas das famílias de seus fiéis para a assim-chamada Cura e Libertação. Shintoísmo, Budismo Popular [não falo do Budismo Escritural, mas tal como aplicado nas vidas das populações concretas, seja no caso do Budismo Theravada ou Mahayana em suas diferentes versões: Jodo Shu, Jodo Shinshu, Tendai, Shingon, Soto Zen, Tibetano]. Aliás, diz-se que, no Japão, o que sobra de Budismo é mais cerimonial, e referente a esses antepassados. Quem vai a Tóquio procurando o Budismo acaba dormindo num hotel-bolha, e descobre que deveria ter ido a Kyoto...  No Espiritismo Kardecista, Umbanda e Candomblé,  o culto aos antepassados também tem o seu lugar. Por que tamanha preocupação com os mortos? Para além [ou aquém] da condição que se possa atribuir a cada um deles, do Orum aos Umbrais, passando por Círculos ou Degraus do Inferno e Purgatório, a razão é simples: porque a existência deles nos inscrevem na história de nossas famílias e comunidade. E eu não falo de brasões, de etimologias de sobrenomes, nem de status conferido por sobrenomes quatrocentões, ainda que isso seja o lado mais “emblemático” ou “icônico-pueril” da questão toda. Os “bem-nascidos”, etc, são expressões fúteis de um mundo tolo e dos que preservam essa “sobre-inscrição” nas suas pequenas narrativas.

Mas voltemos ao que importa. O sujeito, em qualquer idade, que não tem mais suas fotos de infância, reencontra o pai em suas fotos de casamento. Talvez, o pai ali seja vigoroso e exiba os traços firmes ou rudes que ele tanto temeu. Ou pode exibir uma afeição ou sensibilidade que ele acharia “peculiar” e descontextualizada de sua memória na relação com ele. Há aquelas velhas fotos de avós e tios, em postura tensa/congelada, características dos estúdios de fotografia da época e dos fotógrafos lambe-lambe. Há toda uma hierarquia [ouso dizer: quase uma iconografia] no lugar que cada um ocupa ali, assim como ocupara nas mesas de refeição. São as Santas e Profanas Ceias de cada Lar que podem ser, em parte, reconstituídas.

E, nesse sobrevoo iconográfico [que deve ser mergulho afetivo e de exploração dos vínculos territoriais e modos de inserção do grupo e de cada um] ,percebe-se, por exemplo, aqueles quatro irmãos solteiros, tios remotos, que moraram juntos, até que sobrou um só. E se descobre desde quando os irmãos solteiros viveram em seus guetos próprios, até morrerem isolados. Ou, se percebe, o quanto se falavam, ou não, os primos, ou se perdiam de si aos trinta, quarenta, ou mais cedo. Muita coisa se deslinda, quase até virar poesia funda, nostálgica, mas nunca finda. Sempre viva. Padrões familiares são mais-que-sugeridos, “maldições familiares” [ou padrões repetitivos e destrutivos] são flagradas[os], e o sujeito se vê “malvisto”, malquisto ou “de lado” como seu tio-avô, trisavô bisonho ou bizantino. Ora, a vida sempre a si se recorre, mesmo em seus amplos fractais: tudo cabe no caleidoscópio. O que se chama de Arquétipo também inclui esses padrões, muito para além do Édipo. E o sujeito então descobre paisagens internas, externas, recorrentemente humanas, e percebe que sua questão [talvez ainda informulada] é a variação de alguma questão já proposta, alhures e então. A singularização de algo que “sempre esteve, nunca estando exatamente assim”. O grande insight de Jung em suas amplificações quase-infinitas e fastidiosas foi, talvez, mostrar que o humano sempre se articula nesses eixos de construção invisíveis que o constituem, bem como à natureza. Isso é Goethe psicologizado. Isso é também Strindberg em seu surto psicótico em 1896, narrado em sua “autobiografia da loucura”: “Inferno”. E o que pode ser imaginado, concebido ou delirado existe em algum lócus específico, mesmo que imaginal [e isso também é arquetípico], como já o sabia William Blake, não com essas exatas palavras, porque a vida segue, mesmo dando voltas. Mas são espirais, e não a tal Uroboros dos tratados alquímicos. Felizmente para nós.

E o tal sujeito descobre então, no olhar do avô, o canto do sorriso de sua mãe.








Marcelo Novaes

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Fotos Rasgadas



Suzanne McClelland (1959- )






Imagine você, meu leitor, aquela pessoa cujo sofrimento foi tamanho que ela quereria [ou quer] rasgar suas fotos de infância, todas as suas fotos, porque sente que “ali, e então [e, às vezes, ainda ‘aqui e agora’] nunca foi vista, de fato”. Presunção de tal criatura? Não. De fato, ela estava ali sozinha, e seu meio mal sabia de si [medos, agruras, solidão]. No meu ensaio, O Olho Que Nos Olha Nos Olhos, conto a respeito de uma crise de pânico de certa paciente, onde a foto funcionou como “gatilho” para a crise [na verdade, o gatilho foi a foto somada a outros fatores, que estão lá, na postagem; capítulo terceiro do Olho: “Tempo Fechado para o Ferido Narcísico”].  A pessoa em questão não rasgou suas fotos, mas conheço pessoas que rasgaram. E isso não significava “vontade de apagar o passado”. Não. Trata-se de coisa mais complexa.

Se a pessoa está na foto, ela se olha e sabe que “só a si se tinha”, porque os outros ao lado nada sabiam dela. Isso ocorre com transexuais, por exemplo. Mas com muitos outros que sofreram montantes inquantificáveis e inqualificáveis de abusos e negligências [muitas vezes, ambos: alternadamente e em contextos diversos]: morais, emocionais, físicos. Repito: abusos e negligências. Ênfase para o conectivo “e”.

Assim, para tais pessoas, rasgar a foto não seria um ato de traição para com o ocorrido, mas de “verdade” para com as ocorrências todas, uma vez que “lá e então [nos contextos das tais fotos de infância, emblemas dos tais fatos infantis] estavam sozinhas e anônimas”, naquilo que mais lhes importava: em aspectos essenciais de si mesmas. Estavam sós. O ato de rasgar implicaria em “assumir para si” [num gesto dirigido também ao outro, portanto “dizendo aos companheiros da foto”] que estavam sós.

Sempre falo e reitero a dor ligada à identidade, a dor de não ser visto em aspectos nevrálgicos que nos definem, desde lá atrás: as agressões vividas na escola, os medos religiosos impronunciáveis, os pesadelos inomináveis, o terror do ambiente familiar “disfuncional” [sic; esta palavra é mansa demais para o contexto], o estar num corpo que lhe parece errado ou desconexo [se pensou nas intempéries e cisões pisque-soma tratadas por Winnicott, siga por aí, que é um bom caminho de exploração]. No caso de haver uma biografia com este perfil trágico [sim, a palavra é esta: faça um roteiro de filme e tente definir o personagem de outra maneira que não “trágico”, e verás que o falseia também: serás mais um a falseá-lo...], deve-se entender o fulcro da problemática: a cura do grande ferido passa por dois vetores bastante nítidos: 1) Sua história precisa caber dentro dele [em si mesmo e no seu corpo], ele não pode sentir que “sua história é maior do que ele”; 2) os elementos suprimidos [os impensáveis, bem como os “pré-pensamentos”, tais quais os ideogramas de Bion] precisam ser trazidos para a tira biográfica e “caberem nela”. Resumidamente: o sujeito tem de sentir que o que viveu não o sobrepuja nem o sobrepõe; não o afoga, nem o torna um Náufrago. E mais: que o não dito encontra seu lugar na sua tira biográfica, seja ele o Inefável, o Impensável, o pré-pensado, o não-assumido, o segredo ou interdito familiar, seja o que for. Às vezes, isso é incluso e cabe ao sujeito como “halo”, perfume, faro [no caso dos Inefáveis], como religiosidade sincera e exorcismo dos terrores mais arraigados; outras vezes, como um novo corpo que se apresenta mais fiel ao que sempre se sentiu de si [no caso dos transexuais]; outras, ainda, na possibilidade de se saber inteiro e “com o tamanho que lhe cabe”, de fato, sem idealizações [deificações] e/ou demonizações [eis a cura de narciso!], apesar das fotos já não existirem mais.









Marcelo Novaes

domingo, 7 de setembro de 2014

Conhecimento, Dor e Ancestralidade


Suzanne McClelland (1958- )





“A comunidade dos mortos é nossa primeira companhia”, diria o analista pós-junguiano James Hillman. Ou o nosso primeiro pressuposto, digo eu aqui. Não só os mortos, mas a soma dos equívocos e esquecimentos das gerações que nos precederam, incluindo nossas famílias e ancestrais mais imediatos. Além da cultura, naturalmente. Não é à toa que o intergeracional é uma preocupação religiosa antiga [vide os japoneses, em seus rituais shintoístas e budistas, ou na mescla de ambos, shinto-budistas], e uma questão psicanalítica menos antiga [Nicolas Abraham e Maria Torok sendo seus representantes mais óbvios, no rastro de Sandor Ferenczi, todos eles húngaros].

Mas vejamos: aquele que se depara com o acúmulo de esquecidos e os aponta, atravessa, necessariamente, uma fronteira de dor. Há dor no viver-apontar o esquecido. Isso não pode ser subestimado. Isso está para além dos segredos familiares, que algum membro descendente dessa montanha de silêncio queira evocar-apontar: isso inclui os silêncios ancestrais e culturais, de ambientes como escola, igreja, hospitais, orfanatos, quartéis, repartições. Isso inclui vasculhar todo e qualquer escaninho emperrado por falta de uso e ousadia. Já há um quantum de tensão [dor-e-medo] no simples formular da pergunta. Há a segunda travessia de tensão em “suportar fazer a pergunta sem cúmplices” [num primeiro momento] ou, um corolário disso, catalisando antipatizantes. Há o tempo maior para a decantação de tudo e para a possibilidade de acolher, com um sorriso de simpatia, os próprios ambientes negadores do segredo, sobretudo a família, que acusa quem os desvela de “inventar moda”, sendo a própria expressão sintomática da longevidade da herança.

Conhecer é sofrer para, depois, poder se acalmar. Conhecer é vencer a força-de-inércia da herança ancestral que, como o lodo de um rio que não se limpa há muito tempo [ou que nunca se limpou] tenta emperrar toda inquirição mais funda, todo o maquinário da escavação e questionamento mais incisivos. Porque questionamento “de fato” e “de mérito”, não apenas retórica de confirmação do já-dito, do já-preservado, daquilo que a Ancestralidade toma por “relíquia”. Isso é fácil como imaginar que tudo acaba com a morte [oh, como seria banal e simples todo o problema se resumir no ideograma “finitude”], e é chover no molhado.








Marcelo Novaes