Turquia

Turquia

terça-feira, 29 de julho de 2014

a cor que reza dormindo – portão número três




um homem velho se escora num dos portões dos meus sonhos
ele é azul
pelo fato de ser tão disciplinado
ele é azul
fato
disciplina e risada
engenharia abissal da energia sonhada
nada não é nada disso nada
matéria é balela
balela é o evento
o homem velho
agora escorado na razão dos meus óculos
é vermelho
uma abelha imensa passa por nós
a esquina é dobrável
meu amor por aquele escritor não sustenta as minhas preces
ando
pois que preciso saber a disciplina do planeta acima de mim
o homem velho canta fininho ¿Por qué volviste a mí? – ¿Por qué volviste a mí? é de cantar desafinado-grosso, homem velho!
disciplina é boato
envelhecer é o boato da carne
acordar não pertence
perecer não traduz
a esquina é desdobrável
Adélia Prado não tem moldura





domingo, 20 de julho de 2014

Rubem Alves



Rubem Alves (1933-2014)



Em março de 2010, passei uma tarde na casa de Rubem Alves, em Campinas. Coloco aqui, no Turquia, um pequeníssimo depoimento sobre nosso encontro. Apesar de ter sido um encontro só, foi denso, e eu o compararia a dois encontros que tive com Eleonora Marino Duarte, a Lola, que é minha amiga até hoje, encontros havidos em 2009 e que, tenho certeza, nenhum de nós se esquece. Eleonora faz parte deste blog.

Uma professora de literatura da Unicamp fez a ponte entre mim, outro poeta e Rubem Alves. Ao chegar na casa dele, ele estava dormindo, fazendo a "sesta". Não tenho a menor dúvida de que ele não nos esperava e, ao ver o grau de confusão de tantos professores universitários, não duvido que o "desencontro" tenha se dado por má comunicação da professora. Foi interessante chegar no dia errado, inclusive para flagrar a espontaneidade assim gerada. E para vivê-la.

Rubem Alves é [e faço questão de manter o verbo no presente] um cara sem afetações. Não vi isso em professores acadêmicos, e não coloco aqui nenhuma exceção, depois de conhecer bastante muitos professores acadêmicos. Ao dar-lhe meu livro de juventude, Cidade de Atys, escrito antes dos meus 26 anos, ele disse: "bastante herético". Vimos que somos, ambos, anticlericais, mas profundamente religiosos. Rubem Alves era teólogo, além de psicanalista, e não lhe agradava o clericalismo, bem como a agenda política atrelada às religiões. Não o imaginem "ateu", longe disso. Eu lhe falei de cristãos que me interessavam, dos blogs que tinha na época [muitos desfeitos de lá pra cá], e ele viu que minha espiritualidade era baseada em cristãos neoplatônicos [Duns Scotus, Escoto Erígena] e nos místicos apofáticos [Nicolau de Cusa e Meister Eckart], além do Budismo. Repito: Rubem Alves era profundamente religioso, ainda que anticlerical. Podia, sim, elogiar um padre destacado do clero [Padre Léo, por exemplo], mas não endossava a institucionalização religiosa. Assim como poderia desmontar os males do fundamentalismo, mostrando o absurdo de aplicar as regras do Levítico para os dias atuais. Fez isso em artigo publicado na Folha de São Paulo. Ainda no tocante à religião, brincou achar o "caqui" a fruta do Éden, e mostrou um quadro que fez, com folhas secas do caqui. Comentou a sobrevivência de sementes de caqui à radiação de Hiroshima, o que para ele era simbólico-emblemático de sua associação.

Era também educador, como todos sabem, com ênfase no "aprender a aprender". Eu diria, um Krishnamurti tupiniquim, sabendo ouvir e fazer perguntas que despertassem mais o conhecimento latente. Maiêutico, portanto.

Tomamos café numa padaria, acompanhado da versão local de um biscoito de polvilho mais consistente, de cujo nome, infelizmente, não consigo me lembrar. Falava-me de encontros que promovia em sua casa, onde os já idosos encerravam as leituras e conversas com "pão e sopa". Nada mais apropriado. Sei que eles liam bastante Guimarães Rosa, a inspiração para o tipo de tertúlia que ele recepcionava.

De lá para cá, muita água rolou. Conheci saraus e deles me despedi, porque me agradam conversas a dois, a três, a cinco, ou aquele ambiente caseiro que os poetas que conheci não sabem produzir em saraus. Fui a dezenas deles para decidir que não quero "mais do mesmo". Enxuguei meus blogs. Rubem Alves decidiu encerrar sua coluna na Folha quando descobriu que "já tinha dito o bastante". Era um grande "escutador" e "provocador de relatos", além de contador de histórias. No passado, achara que dizia as coisas para se encaminhar para o silêncio, mas, de fato, assumia que a perspectiva de um grande silêncio lhe parecia "barulhenta", "assustadora" demais, como na expressão de Nelson Rodrigues: "Fez-se um silêncio ensurdecedor". Em Rubem Alves, paradoxos não eram estilo, nem boa dramaturgia: eram uma constatação da vida. Um modo de ser fiel aos fatos e a si mesmo. Daí suas "deserções" do mundo institucionalizado: ex-teólogo, ex-psicanalista, valorizador das passagens e dos "fracassos" [fracassos corretos, diria eu, como o de Van Gogh], contra nossa idolatria cultural dos "sucessos". Dizia ele, textualmente, e assim me disse: "Nunca conheci nenhum bem-sucedido que fosse interessante". Havia sido convidado a escrever para uma editora um livro para aspirantes ao sucesso, e recusado o convite com este mesmo argumento.

Fique em Paz, Rubem Alves, porque a Paz é para os bons, e vc é bom. Como na tabela periódica, cada qual ruma para o "peso atômico" em que seus sentimentos de amizade, justiça, valor e amor pendem. Se estiveres entre seus iguais, este lugar merece o nome de Céu. Ou uma das boas casas do Pai.

Abraços fortes e conforto à família. 







Marcelo Novaes

sexta-feira, 11 de julho de 2014

Retrato em Branco e Preto


com falsos ares de riso
contidos em seu rosto
o homem não ri
mas seus olhos o denunciam
homem de estranho semblante
por dentro a zombar
daqueles que o contemplam
numa foto em branco e preto
amarelecida pelo tempo
naquele quarto obscuro
onde aranhas tecem suas teias
nas paredes vazias


Ianê Mello
(25.06.14) 


domingo, 6 de julho de 2014

Sobre o tempo de perder.


Trent Parke 1998
The art of losing isn't hard to master; so many things seem filled with the intent to be lost that their loss is no disaster.  (“One Art”, Elizabeth Bishop)
          As pessoas perdem diariamente: neurônios, células, cabelos, unhas, papéis, bilhetes, máscaras, memórias... Perdas banalizadas no amontoar das agendas que remontam tão pouco o contar dos danos absolvidos. Um dia perdemos as chaves de casa e nos pegamos com aquela sensação estranha de ter inaugurado, sem querer ou esperar, uma avalanche ininterrupta de perdas cotidianas: lá se vão os documentos, a hora do almoço e a hora de dormir, a hora de brincar com os filhos, de ligar pra amiga que está de cama com febre, de escrever um bilhetinho de amor pra pendurar na geladeira. Com a geladeira vazia por fora e por dentro, perdemos a alquimia de preparar nosso alimento, perdendo também a mesa e a conversa na varanda, na sala, no quarto. Conversaremos com banheiros, apertados de preferência, solitárias testemunhas das nossas ansiedades claustrofóbicas. E a passos rápidos perderemos um dia a e-terna-idade do chá que nunca marcaremos. Porque teremos passado anos a fio, ferro, fogo e açoite, perdendo um tempo danado investindo toda quantia recebida no final do mês nos pagamentos do começo do mês: para os bancos, para os impostos, para as contas a penar. E quantas a-pesar! E paranoicos trataremos de fazer cópias das chaves, das fotos, dos documentos, dos corpos com os quais deitamos. E nos preocuparemos em ganhar mais dinheiro para não nos preocuparmos em perder tanto dinheiro. E esqueceremos tudo que for de constrangimento com o tempo futuro para repetirmos tudo de novo e não pensando em nada, nada criarmos a respeito... Pequenas perdas visíveis se atrelam a um tempo imediato: “aquele” que não se quer perder, mas já perdido está: estamos sem tempo! E é claro que nos denunciaremos de quando em quando, lembrando uma, duas perdas, ou melhor, esquecimentos...nossos. Uma humanidade inteira de esquecimentos. Uma História inteira.
             E é certo que perderemos ao longo da vida bens de um mundo concreto e excessivamente real, perdendo objetos, coisas que se gastam pelo uso e até pelo bom ou mau abuso: brinquedos, cartões, cartas (se os enviarmos e recebermos algum dia, é claro), perderemos bugigangas, bibelôs, meias, livros, luvas, guarda-chuvas... Guarda-chuvas... Em algum lugar, no mundo do excessivamente imaginado, deverá existir um reino de afeto para os guarda-chuvas perdidos, esquecidos nos bancos das praças, nos lugares a ermo, nas calçadas, nos chafariz tomando banho, nos sinais equilibrando malabares.
          Um dia acordaremos velhos e teremos perdido o primeiro amor... E como será difícil perder! Dor no peito, sofreguidão que parece eternizar as horas, os minutos longe do ser adorado. E logo aprenderemos que doer não é somente parte do crescimento. Doer é o próprio crescimento e aprenderemos – às vezes no susto - que dói mais perder pessoas que coisas e que pessoas não são coisas. Não servem para qualquer tipo de uso ou abuso. Uma aprendizagem que para alguns começará muito cedo, até mesmo antes do nascer da vida ou do dia. Mas que para outros começará tão assustadoramente tarde que mal haverá tempo desprendido para a descoberta de uma compreensão mais profunda de mundo.
            Dizem os mais antigos que algumas pessoas nasceriam com maior propensão a perdas que outras. Seria uma questão de destino, estrela, sorte ou devaneio de quem diz: nasceu “voltado” pra lua. O certo mesmo é que ninguém, nenhuma pessoa humana passará pela própria vida sem nunca perder algo ou alguém – seja por destino, livre arbítrio, resignação ou desejo. A gravidade, bem, a gravidade só saberá quem viver e quem viver viverá. Existem conjunturas as mais diversas e até algumas esquizofrênicas. Às vezes se chega ao auge, ao topo da montanha, da colina ou de uma escada, quando, de repente, sem que se noticie, lá no esconderijo do sótão se encontra em estado escondido uma perda imensa que se aloja na mente e no coração sem qualquer justificativa, ocupando espaço demais. É um imprevisto de existir. Vive-se então o conflito de uma felicidade vazia. Como quando entramos nos casarões antigos, bem mobiliados, limpos e nos cantos nos deparamos com ratoeiras à espreita querendo ferir a frágil existência do rato, o rato de Clarice.
          E não será também o rato que se espera prender e amordaçar com medo e vingança parte de uma perda ulterior? Tanto ódio sangrará o rato? Matará o rato? O cadáver do rato quebrará nossos espelhos? Ou serão nossos os dedos presos e decepados pelas ratoeiras? Mas dizem também os antigos que quando se vão os anéis, os dedos, esses ficam. Os dedos que vamos perdendo das mãos. Para que mãos se elas não nos servem para o artesanato de afagos, preces e acenos?
            Assim como é dito no belo poema de Elisabeth Bishop há uma arte de perder: perderemos cidades, rios, continentes inteiros. Perderemos o sotaque e a gente que morava com a gente, a gente que reconhecia a gente na rua, a gente que abraçava a gente por nada, de graça: nas brincadeiras de roda, nos encontros entre amigos. Perderemos e não daremos conta do risco e do riso. Se uma alegria é uma ação única e irrecuperável, a memória, mesmo a dessa esfumaçada alegria, é nada mais que o vestígio, a pétala seca do que um dia foi vivido.
           Não precisamos de tantos acúmulos. Imprecisamos. E as perdas fazem parte do que somos. Há perdas precisas e até preciosas – como lágrimas, sorrisos, a separação decorrente da liberdade de quem se ama, o crescimento absurdo dos filhos, os frutos que amadurecem e as nossas raízes, que quase sempre tortas, depois de viverem todas as suas estações se vão para o dentro delas. São perdas, partos, despedidas que trazem à tona o nosso departamento interno de “perdidos e achados”.
            Perdemos chaves, óculos, carteira, o trem fantasmagórico das coisas, um porão de lembranças e urgências para as traças. E se o mundo for mesmo acabar pelo aviltamento dos corações como professou Baudelaire, talvez possamos ainda nos empenhar um pouco mais no zelo de nossas mãos para além da arquitetura das lutas e das ratoeiras. Dedilhar os dedos de outras mãos, quem sabe... atravessando a rua e o tempo

Patricia Porto

 (Publicado no livro "Narrativas Memorialísticas: Por uma Arte Docente na Escolarização da Literatura")